27 de dez. de 2009

A metade de um



"Você vai encontrar a sua metade"
"Você vai encontrar alguém pra você"
Quem nunca ouviu isso na vida?
Mas me pergunto... Todos nós temos mesmo uma única metade? Todos nós somos predestinados a vivermos a vida toda com alguém que vai nos completar?

Então, como se explica casamentos incriveis e felizes que acabam por culpa da rotina?
Muitos casais são muito felizes durante o relacionamento. Tá certo que não duram a vida inteira, mas parte dela é completa com esse outro alguém. Muitas pessoas sao felizes em mais de um casamento.
Como se explica isso?
Se nós possuimos uma outra metade no mundo capaz de nos fazer feliz como mais ninguém. Como podemos encontrar essa mesma felicidade em tantas outras pessoas?
A questão não é se fomos felizes antes. E sim, se somos apenas a metade de um inteiro.
Passamos a vida ouvindo comentários e consolos que nos fazem acreditar nisso. Mas, todos podemos ser felizes sem um amor desses de cinema. Não estou dizendo que posso ser feliz sozinha. O que quero ressaltar é que nós podemos sim encontrar um complemento em outra parte da vida.
Quantos médicos não se sentiram realizados ao salvar uma vida? Quantos palhaços não alcançaram a sua meta ao fazerem uma plateia rir até doer a barriga?
Nós podemos alcançar essa alegria perfeita em muitos momentos da vida. E isso não significa que o fato aconteceu devido à alguém que nos acompanhava. Pelo contrário, foram as situações e atitudes que fizeram esses segundos serem incríveis.
Não somos metade. Somos um inteiro.
Não precisamos de um alguém para completar nossa vida e nos fazer feliz. Precisamos de muitos.
O amor não é eterno, é momentâneo. É diferente para cada um de nós. Ninguém é capaz de amar da mesma forma ou com a mesma intensidade pessoas diferentes. Mas essas diferenças são só algumas vírgulas do texto.
Somos feitos de amor , de ódio, de insegurança. Somos feitos de sentimentos. E o amor é apenas mais um deles. Não devemos colocá-lo acima de tudo. O amor acontece sem que seja planejado.
Não tente descobrir quando ou quem você vai amar. Porque a graça do amor é simplesmente sentir.
Não tente amar mais do que a si mesmo um outro alguém. O amor-próprio é a base de todos os outros sentimentos que seguram a nossa vida.
Somos livres para amar a muitos. Somos livres para errar. Somos livres para sermos felizes com cada amor que possuirmos durante a vida.


;*

25 de dez. de 2009

Medo do escuro


Quando um barulhinho no meio da noite nos acorda, é inevitável... Quem nunca precisou acender a luz do quarto ou então uma lanterna para verificar se o local estava livre de monstrinhos que atire a primeira pedra!
Todos nós sentimos um medinho do escuro alguma vez na vida. Nem mesmo o Chuck Norris se livrou daquela ansiedade ou desconfiança do escuro. Isso acontece porque nunca sabemos o que podemos encontrar lá. Fomos muito mal acostumados a avaliar o mundo através dos olhos e acabamos de certa forma ignorando todos os outros sentidos.
O medo de escuro é um dos temores mais comuns entre os seres humanos. A boa notícia é que a maior parte das pessoas consegue vencer esse medo com o tempo. A má noticia é que deixamos pra trás um tanto de aventuras interessantes imaginadas no escuro.

Com o tempo vamos nos acostumando com o mundo em que vivemos, e deixamos de admirar a maior parte das coisas. Quando somos pequenos, não encontramos explicações para nada. Simplesmente achamos tudo lindo e incrível. Não procuramos entender nada. Simplesmente sentimos e pronto.
Já quando estamos crescidinhos, temos a chata mania de encontrar explicações cientificas e lógicas para tudo que nos cerca. Quando aprendemos que as coisas não mudam no escuro, deixamos de sentir medo do que não vemos. Ou pelo menos em parte.

Isso acontece com quase todas as pessoas. E para nós, o medo de escuro é tomado como um temor infantil.
Mas em uma noite de tempestade, sozinho em um apartamento escuro...A porta do armário se abre sozinha... Você fecha os olhos e quando os abre, volta a ser criança. Um arrepio na espinha é inevitável!
hehehehe

15 de nov. de 2009

Tempo



Queria ser criança.

Achar graça dos problemas, não me preocupar com nada além de hoje.

Queria saber rir quando alguém fala o que não deve, em vez de ficar preocupada ou afetada com isso

Queria sentir o vento nos cabelos, a lama no corpo e o sol me tocando sem achar que aquilo é algo raro

Queria achar tudo muito simples, me sentir protegida sempre.

Queria poder amar sem sofrer por isso.

Dizer quando sinto medo sem ser ridicularizada.

Queria poder dizer que acredito em Papai Noel e coelhinho da Páscoa.

Queria falar alto tudo o que penso.

Chorar, gritar, me expressar sem medo.

Queria soprar o sabão só para observar as bolhas no ar.

Sentir prazer naquilo que é simples.

Queria sentir o gostinho do novo todo dia.

Queria ser criança.

Para que me cobrissem toda noite.

Me contassem histórias de lindas princesas.

Me fizessem acreditar que sempre há um jeito.

Que todos meus sonhos vão se realizar.

Queria dormir ouvindo uma canção bonita, mas tudo que ouço, são os carros da rua.

Todos os meus sonhos guardei em um armário.

Minha esperança, acho que joguei embaixo da cama.

Psicose



O sol manifestava-se radiantemente naquela tarde de dezembro. Fora um dos dias mais belos que Ilópolis já estampara nas fotografias mentais dos cidadãos. Dizem que o clima nos afeta constantemente. Eu acreditava nisso até descobrir que somos responsáveis por aquilo que nos molda.

O pior dia de minha vida toda acontecera com um pano de fundo azul celeste e uma brisa agradável. Não sei ao certo o que pensar de São Pedro. Acho que ele andara decepcionado comigo, pois escolhera justamente o pior dia para estampar uma beleza rara em minha cidade.

Dizem que os santos não se deixam levar por sentimentos ruins. Eu duvido. Tenho para mim como verdade que andei desrespeitando o ego de algum deles.

Sempre pensei que aqueles cartões-postais eram obra de um bom e exagerado photoshop. Aquela tarde porém, provavelmente teria servido de inspiração para fotógrafos de plantão...

O dia seria perfeito se eu tivesse continuado embaixo das cobertas por mais tempo. Se bem que isso não mudaria o fato de eu ter perdido minha sorte em algum lugar.

Acordei mais cedo do que de costume. O estranho é que não havia motivo algum para isso. Algo me levara ao parque naquela manhã. Não havia ninguém além de mim e um mendigo. Confesso que senti vontade de puxar um papo com ele. Mas não tinha tempo. Não tinha coragem. Não tinha motivação.

Sentei-me em uma pedra fria e escondida perto do banheiro masculino. Continuei ali por um bom tempo, esperando aparecer algo no mínimo motivador para me provar que minha intuição não andava falhada como todos os outros sentidos.

Não aconteceu nada além de brigas entre maconheiros, treinos de futebol e corridas curtas para perda de peso. Decidi que a partir daquele momento meu sexto sentido estava oficialmente aposentado.

Estava errada. Completamente errada. Talvez a única coisa que ainda funcionasse em mim era meu sexto sentido. Ou isso ou o meu anjo da guarda resolvera voltar de férias para me proteger contra os males da vida novamente.

Estava pronta para ir embora quando avistei ao longe um casal que se beijava. Achei tudo tão romântico que decidi esperar mais um pouco. Senti um incômodo dentro de mim, que se transformava em nervosismo, calafrios, tremedeira e tudo mais que tinha direito.

Fitei minhas mãos por alguns segundos. Elas tremiam tanto quanto um massageador a pilhas. Algo estava errado. Eu sabia.

O casal separara-se. A menina seguia uma trilha em direção ao fim do parque. O garoto aproximava-se de mim aos poucos. Ao vê-lo assim de longe, lembrei-me do meu namorado. Senti a saudade apertando meu coração. Fechei os olhos.

Não o via há um mês. Depois das más notas trimestrais na escola, seus pais o encaminharam para uma escola muito cara da capital. Ficaria interno durante o ano letivo. Voltaria nas férias de verão assim que fosse liberado.

A separação parecera um bicho de sete cabeças na primeira vez que fomos avisados. Acabamos aceitando obrigatoriamente essa situação. Antes de seguir viagem, nos encontramos para uma última despedida. Ele segurara minhas mãos entre as suas, e com os olhos grudados nos meus, me fizera o pedido mais apaixonante que eu poderia esperar:

- Me espera. Eu volto assim que puder. Vou lembrar de ti durante todos os segundos que estivermos separados. E quando voltarmos a nos ver, toda essa falta valerá a pena.

Meus olhos encheram-se d’água. Aquilo doeria demais em mim. Estava prestes a desabar quando ele segurara-me entre seus braços, em um abraço desesperadamente apaixonado.

Eu o amava e o esperaria até o último dia de minha vida. Mas naquele dia, tudo parecia um pesadelo. Até mesmo os sorrisos pareciam-me lágrimas de saudade. Não sabia ao certo quanto tempo aquilo duraria. Só sabia que desejava muito que acabasse depressa.

Despertei das lembranças de repente. Não havia ninguém no parque. O céu fechara-se com nuvens carregadas de chuva, e a brisa quente avisava a tempestade que estava por vir.

Não vi quem era o garoto que aparecera lá. Meus pensamentos me levaram para tão longe que nem percebi o tempo passando.

Estava na hora de voltar. Já passava das três horas da tarde. Segui caminhando pelas ruas desertas da minha cidade. Em pouco tempo a chuva já mostrava-se presente.

Aquilo me deprimira. Faltavam duas semanas apenas para rever Alisson. Então ficaríamos juntos novamente. Ele me abraçaria dizendo o quanto estava feliz em estar ali. Eu diria a ele que sofrera com aquela distância. Nós nos sentiríamos leves e tudo ficaria bem. Tudo ficaria certo de novo, como deveria ser.

Eu sabia que não.

Os quatorze dias passaram e aqui estou eu, no banco de uma rodoviária, às seis e meia da manhã, esperando pelo reencontro. Não há ninguém além de mim e meus pensamentos. Nem mesmo os pombos deram-se ao trabalho de acordar tão cedo.

Por incrível que pareça, não estou ansiosa para vê-lo. Sinto-me mais incomodada com essa solidão que me assola do que com a espera para reencontrá-lo. Queria estar acompanhada por milhares de pessoas. Queria sentir o calor humano sem precisar me relacionar com o mundo. As coisas seriam mais fáceis assim. Não haveria dor, nem espera. Não haveria angústia, nem traição. Eu não me sentiria culpada por nada nunca. Haveria apenas um vazio à minha volta. Mais nada.

- O ônibus quebrou. Não tem ninguém para buscá-los tão cedo. Provavelmente só chegará amanhã à noite. – disse rispidamente o motorista de um dos ônibus.

Estava livre por mais um dia. Livre para colocar os pensamentos no lugar.

Mais uma vez sozinha. Mais uma vez sem destino. Segui até o parque. O mendigo continuava lá sentado, dentro de sua bolha que o separava do resto do mundo esnobe. Senti vontade de conversar com ele. Mais uma vez não tive tempo, nem coragem, nem motivação.

O tempo mudou, o céu abriu e eu continuei ali sentada na mesma pedra. O dia parecia repetir-se. O mesmo casal, as mesmas lembranças. Continuei sem descobrir quem era o garoto.

Mais uma vez a chuva caiu. Mais uma vez eu dormi pensando em como tudo precisava voltar ao normal. Mais uma vez eu senti que algo estava errado.

O dia chegou. Acordei cedo para não fazer absolutamente nada. Passei o dia inteiro em frente à televisão com o pensamento distante. A noite chegou e eu sigo agora para a rodoviária novamente.

O ônibus em que Alisson veio está estacionado. Alguns passageiros descem. Não o vejo. Ele não veio. Não cumpriu sua promessa. Tudo não passava de um grande teatro.

Os postes de luz não funcionam muito bem por aqui. No final da rua há algumas luzes acesas, que iluminam o caminho. Me sinto como se estivesse morrendo. Estou seguindo a luz no fim do túnel e nada me faz parar. Sei que isso não mudará absolutamente nada e que amanhã provavelmente eu acordarei e irei até o parque. Sei que ficarei lá sozinha, esperando o dia em que aquele homem venha conversar. Ele não virá, mas eu sempre arranjarei uma desculpa para acreditar que não é culpa minha. Passarei meses respondendo a meus amigos que Alisson infelizmente não poderá vir, pois as notas não foram boas e como conseqüência disso ele ficará para melhorá-las. Uma grande mentira. Repetirei isso milhares de vezes até que um dia vou me cansar disso. Então mandarei um e-mail que nunca será respondido. Essa é minha sina. O amor é minha sina.

As luzes estão mais perto. Iluminam meu rosto com mais intensidade. Sinto-me abandonada e destruída, porém nenhuma lágrima corre de meus olhos agora. Não chorarei nem mais um dia por ele.

Agora as coisas fazem sentido. Talvez eu realmente tivesse um bom anjo da guarda, ou um sexto sentido afiadíssimo. Minha vida está prestes a mudar, porque eu me sinto diferente. Continuo seguindo em direção à minha casa.

Acordo. Hoje é dia 19 de dezembro, e embora fosse de se esperar, há poucas renas enfeitando as casas para o Natal. Na minha rua, apenas Dona Hilde decorou o jardim para a data festiva.

Um velho Papai Noel desbotado em um balanço na área, algumas luzes coloridas nas árvores e um tapete em forma de pinheiro enfeitam a casa. As pessoas aqui não ligam muito para datas festivas. Aproveitam os feriados para saírem ou dormir até mais tarde. Nada de anormal, é claro.

Verifico meu celular três vezes a cada dois minutos. Alisson não ligou, não mandou e-mail nem deixou recado. Por onde andaria a essa altura?

Amarro meus cabelos de qualquer jeito e saio para o pátio com uma xícara de café na mão. Está frio e não há ninguém além do velho Noel desbotado na rua. Aceno discretamente para o bom velhinho que me ignora totalmente. Acho que hoje será um daqueles dias chatos, onde eu e o controle remoto trocaremos juras de fidelidade durante os programas de televisão.

Sempre pensei que morar sozinha seria um grande desafio. Não é. A maior parte do tempo me sinto sozinha. Essa solidão tem me afetado muito ultimamente. Tanto que ando conversando com minhas pantufas de porquinhos.

Ter dezenove anos não é divertido. Namorar um garoto de dezesseis que me ignora também não. Talvez esteja realmente na hora de mudar de vida.

O café acabou e na televisão passa pela trigésima vez o episódio de uma série americana. Se um dia eu decidisse virar atriz nem precisaria estudar um monólogo. Simplesmente chegaria em frente as câmeras dizendo:

- O que é que você fez com meu carro James? A lateral está amassada e o banco tão sujo que até parece que uma vaca sentou ali!

Um homem descontraído com cara de culpado apareceria na cena gritando:

- Qual é mulher?! Eu nem amassei tanto assim! E quanto ao banco...Bem, a culpa é toda sua por me dar aquela torta de chocolate para comer. Eu avisei que aquilo ia sair uma hora, não avisei?!

Seriamos interrompidos por aplausos...

Hora dos comerciais. Nem mesmo o rádio escapa dessas chatices. Preciso sair, fazer alguma coisa para me distrair.

O telefone toca. Levo um tempo até decidir se atendo ou não. Melhor atender.

-Alô?!

-Bom dia Dora.

-Quem fala?

-Isso realmente não interessa agora. Escute bem o que vou te dizer: Não repita o que tem feito nos últimos dias. Nada de solidão no parque Dora, isso não é legal.

-Quem é que está falando?

-Não, não, não Dora! Não discuta comigo. Isso vai criar muitos problemas.

-Escuta aqui se isso é algum tipo de trote..

-Nada disso querida. Vou dizer só mais uma vez. Não repita nada daquilo ou Alisson nunca mais verá a luz.

-O que?

O terror tomou conta do ambiente. Haviam pego ele. Nada daquilo que pensei antes era verdade. Enfim uma boa noticia. Mas por outro lado, preferia ser abandonada ao invés de colocar meu Alisson em perigo.

-Somos só você e eu agora. E eu quero que seja assim! Mude Dora. Mude ou a cabeça do seu namoradinho vai mudar de lugar!

Desligou.

Não consegui reconhecer a voz, mas ela não me soava estranha. Era como se eu já tivesse ouvido aquele homem falando.

Senti vontade de correr até o parque, disfarçada com uma peruca loira e um sobretudo estilo Sherlock Holmes. Poderia até fazer isso, mas era a vida do meu namorado que estava em jogo. Eu sabia que não poderia repetir nada daquilo que já fizera a partir daquele momento. Mas eu precisava ir até o parque, precisava descobrir quem estava me espionando. Uma sensação de que eu estava sendo observada instalou-se em mim.

Segui até a porta e a tranquei. Pensei em fechar as janelas quando ouvi um ruído vindo da rua. Havia alguém ali. E o pior de tudo: aquilo não fora um acidente, quem quer que fosse, queria que eu soubesse que estava ali. Senti um calafrio subir pela espinha. No fundo, eu sabia que não me faria nada. Estava jogando comigo. Estava brincando com minha vida e isso eu jamais admitiria.

Em um súbito ato de coragem, peguei um espeto da coleção de papai. Destranquei a porta e sai gritando:

-Apareça! Apareça seu miserável!

Ninguém respondeu. O portão dos fundos da casa bateu. Ele havia escapado. Em menos de dois minutos o telefone tocou incansavelmente.

-Alô...

-Dora meu bem, não brinque com sua vidinha assim. De forma alguma você deve se dirigir a mim com esse ódio. Somos amigos, não somos?

-Olhe aqui! Seu filho da puta, eu não acredito que tenha raptado o meu namorado e se...

Desligara. Mais uma vez.

Senti uma mistura de medo e raiva apoderar-se de mim. Sem pensar duas vezes, busquei um casaco no quarto e sai de casa o mais depressa possível. Dessa vez não iria ao parque, muito menos a rodoviária. Ia até a casa de Margaret, mãe de Alisson, para contar-lhe tudo.

A rua estava completamente vazia. Não havia nem mesmo cachorros zanzando. Na casa dos Albuquerque não era diferente. As luzes estavam todas apagadas. Não havia ninguém. E agora?

Resolvi correr até a casa de um amigo para contar-lhe tudo. Talvez ele pudesse me ajudar.

Atravessei a rua e caminhei mais quatro quarteirões, nas ruas totalmente vazias de Ilópolis que agora pareciam assustadoras. Onde todo mundo havia ido?

Carlos estava sentado na calçada quando cheguei. Ao me ver de longe, já sabia que estava ali para contar-lhe algo ruim.

Conhecia-o desde os meus cinco anos de idade, e nesse tempo ele nunca mudara muito. Os óculos de aro grosso, o cabelo penteado para trás com gel e os casacos de lã com losangos coloridos. Ele sempre me ouvia atentamente, fazia cara de quem não entendeu nada e depois me ajudava muito.

Éramos amigos desde sempre eu acho. Não me lembro uma única vez em que eu senti raiva dele. Exceto todas às vezes em que ele falava freneticamente sobre como minhas saias eram curtas demais para alguém da minha idade.

De qualquer forma, Carlos seria minha última esperança. Se ele não pudesse me ajudar, então eu tinha certeza de que ninguém mais poderia. Esse pensamento me causou pânico. E se ele se negasse a me ajudar? Afinal, Carlos nunca fora muito com a cara de Alisson.

Eu o entendo. Sentiria a mesma coisa no lugar de Carlos. Na sua visão, o meu namorado não passava de um louco viciado em maldades do tipo: “apelidos mais do que maldosos” e “armários são os melhores amigos dos nerds, portanto fique aí dentro”.

Na verdade, nesses momentos eu sentia nojo de Alisson. Tinha vontade de arrancar-lhe um dos braços e usá-lo como arma para espancá-lo.

Lembro-me de algumas vezes em que briguei com ele por culpa desses atos ridículos. Gritara com ele em frente a todos os amigos. Alisson ficara furioso comigo por estar defendendo Carlos. Passamos uma semana sem nem dar bom dia. Depois, ele voltou com o “rabinho entre as pernas” para mim.

Sei que nunca fora um bom aluno, nem mesmo um homem com compaixão. Mas era meu namorado, e acima de tudo era humano. Fosse quem fosse, eu precisava tentar ajudá-lo. Afinal, fora minha culpa Alisson estar entre a vida e a morte.

Carlos ouvira com toda atenção os meus relatos. Disse-me que provavelmente essa pessoa nem mesmo conhecia meu namorado, e estava fazendo isso por diversão ou por dinheiro. Acrescentou um comentário que me deixou realmente mais abalada:

-Esse cara na certa deve ser louco por Pânico.

É verdade. Em todo aquele tempo, eu sabia que já conhecia aquela história de algum lugar. A velha desculpa de filmes de terror. A boa menina, sozinha em casa que recebe ligações misteriosas. Com certeza deveria ser um daqueles amigos idiotas de Alisson.

Pensei em Ed Kumpbel, um retardado formado com muito tempo disponível para essas merdas. Tinha uma ficha bem suja pelo que me lembrava.

Era solteiro, não fazia nada e tinha uma mente bem recheada de idéias malucas e idiotas. Talvez tivesse armado tudo aquilo. Afinal, nunca gostara de mim. Deixou isso bem claro quando me deu um susto enorme no parque de diversão.

Eu o odiava. Senti meu sangue ferver só em pensar que pudesse ter sido ele.

-Calma Dora. Vamos esperar até a próxima ligação. Grave ela!

-Tudo bem...desculpe te incomodar assim Carlos. Sei que não está com cabeça para essas bobagens desde que sua...Bem, desde aquele acontecimento.

-Sem problemas! Vou desviar minha atenção por um tempo pelo menos. Vai ser bom pra mim. E também nós não queremos que aconteça algo com você, não é mesmo?

Abriu um largo sorriso que me fez sentir um pouco melhor. Apesar de ser uma completa negação para moda, conselhos amorosos ou qualquer coisa ligada ao convívio social, Carlos tinha um coração maravilhoso. Ás vezes gostaria que Alisson fosse assim. Um pouco de bondade não lhe faria mal nenhum.

Estava prestes a me despedir dele quando percebi que havia mais alguém ali além de nós. Eu sentia.

-Carlos, tem alguém aqui com você? –disse-lhe baixinho.

-Não. Ninguém além de você.

Meus coração disparou. Olhei para o final da rua. Havia um carro vermelho estacionado. Alguém tentava desesperadamente fazê-lo funcionar.

-Ele está lá. Estou vendo!

-Fique calma. Vamos até lá como quem não quer nada. Não faça nenhum movimento brusco, entendeu?

-Tudo bem.

Seguimos devagar em direção ao carro. De alguma forma, ele percebera o porquê de estarmos seguindo em sua direção. De repente abriu a porta do carro e saiu correndo.

Como um reflexo rápido, minhas pernas apressaram o passo. Quando dei por conta, eu estava correndo atrás do possível assassino do meu namorado.Carlos ficara para trás. Éramos somente eu e o cara.

De repente, estávamos em um beco sem saída.

-Olá Dora.

Reconheci a voz na mesma hora. Não era Ed, nem um dos amigos idiotas dele. Era meu pai.

-Papai?!

Não pude acreditar nos meus olhos e ouvidos. Meu pai não poderia estar ali. Eu o vira morto há um ano, ensangüentado no quintal.

Ele havia se matado por causa de minha mãe. O casamento estava no fim. Dissera-lhe que o amor acabara-se com o tempo. Não suportou. Dois dias depois, encontrei-o no quintal de casa, morto.

Agora estava ali, bem na minha frente. Não pude acreditar naquilo.

-Onde está Alisson? O que você fez com ele?

-Ora, nada, Dorinha!

-Porque está fazendo isso comigo? Você devia estar morto! Morto e enterrado!

Meu coração batia rapidamente. Eu tremia, chorava, sentia um ódio crescendo. Percebi que não estava louca. Ele realmente estava vivo, bem na minha frente.

-Deve estar perguntando-se como é que eu estou aqui não é mesmo?- disse ele, com um sorriso gélido estampado no rosto. – Pois estava enganada. Nunca morri. Só não queríamos você por perto. Estávamos cansados da sua presença. Todos nós estávamos Dora.

- Todos nós quem?

-Eu, sua mãe, seu namoradinho. Todos nós Dora!

- Seu maluco! Não fale sobre o que você não sabe!

-Garotinha problemática. Chata. Sem graça. Cansamos de você meu bem.

Como se correntes houvessem se rompido, permiti descarregar minha raiva naquela hora. Segui na direção de meu pai.

-Seu cretino!

Alguns segundos depois, senti um calor subindo pela nuca. Não tive tempo de olhar para trás. Cai no chão.

-Acho que ela está acordando!

Ouvi uma voz de longe dizer. Era a voz de Alisson.

Abri os olhos. Estava em uma cama de hospital. Á minha volta encontravam-se meus pais, Alisson e uma enfermeira.

-Vamos cuidar muito bem de você Dora. –disse papai, com o mesmo sorriso gélido no rosto.

-É, eu sei que sim. – disse-lhe em tom de desafio.

A enfermeira chamou a família para conversar sobre minha situação. Quando voltaram ao quarto, não havia mais ninguém lá.

Agora, estou eu aqui, escrevendo minha vida, tentando fazer justiça enquanto posso. Eles estão me seguindo, eu sinto. Há um barulho lá fora. Acho que não passarei dessa noite.




6 de nov. de 2009

Premonição

Aquela noite de novembro poderia ter sido a mais pacata de toda minha vida, porém, acho que alguém desejava algo a mais de mim...

Estava sozinha no meu apartamento. Eu e a televisão trocavamos juras de fidelidade um com o outro. Em pouco tempo a melancólica solidão já tomava conta do ambiente. Decidi ligar para uma amiga e conversar. Sabia que ela estaria ao lado do telefone o dia todo, assim como eu.

Parece que me enganei...Ouvi as intermináveis chamadas seguidas da secretária eletrônica. Nada de Alice. Tentei mais umas trinta vezes, mas parece que eu realmente devia ficar sozinha.

Estava procurando o controle remoto quando o noticiário anunciou ao vivo um prédio que estava em chamas. Tudo bem, até aí nada de incomum.. Mas...Aquele prédio parecia muito com o meu. Sei que há milhões deles espalhados por aí, mas o local, o endereço...

Minha casa estava pegando fogo!

Corri por todos os cômodos da casa...Nada! Mas como?

Talvez eu estivesse ficando louca.

O telefone tocou. Não atendi.

Tocou mais algumas vezes. Continuei ignorando-o.

Havia gritos que ecoavam nos corredores. Uma fumaça instalava-se em meu apartamento lentamente.

O prédio estava em chamas!

Decidi sair de lá.. Deparei-me com todos os vizinhos apavorados... Disseram-me que o prédio já estava assim há mais de quinze minutos... Tudo começara no meu apartamento.

Mas não havia nada lá.

Um menino chorava em um canto do corredor. Perguntei-lhe o que acontecera e ele explicou-me entre soluços que havia se perdido.

Segurei-o pelo braço e corri pela escada. O fogo tomava conta do local. Só havia nós dois lá dentro ainda.

Avistei a saída e me senti um tanto aliviada...

Nunca conseguiram explicar o que acontecera... Eu vi tudo antes...

Ainda não compreendo porque justamente eu...Mas não estou preocupada..

Alguém tinha um motivo, mas não eu.

17 de out. de 2009

Pusilânime



Minha última lágrima caía quando o vi de longe, bem longe. Estava já com a mala nas mãos, pronta para entrar no carro e partir para um destino que nem eu mesma sabia ao certo qual era. Mas aqueles olhos fixados em mim prendiam-me ali como correntes podem prender um fugitivo. Eu não podia parar de olhá-lo. Eu não conseguia parar de olhá-lo.

Ele entendia o que estava fazendo com meu corpo naquele momento. Sabia o quão doloroso aquilo estava sendo pra mim, mas ele não desistiria tão facilmente. Ficamos ali perplexos por um longo tempo, separados por metros de distância que iam diminuindo cada vez que podia tocá-lo com pensamentos.

Era tarde para qualquer coisa. O vento começava a ficar mais forte, precisávamos sair dali, voltar para casa. Eu poderia enfrentar qualquer tornado só para ficar ali admirando seus olhos tristes e seu cabelo movendo-se com o vento, revelando em poucos centímetros o rosto de um homem.

A cada passo que dava em direção ao carro de papai, o vento gritava-me para ficar. As nuvens moviam-se nervosamente no céu como pedido de espera. As ruas estavam vazias e no rádio locutores avisavam seguidamente que os moradores da pequena cidade de Linab deveriam seguir rapidamente para as fronteiras, mantendo-se longe do local, que em poucos minutos seria destruído por um tornado.

As pessoas tendem a proteger aquilo que lhes pertence, assim como uma mãe que se arrisca pelo filho. Muitos moradores abandonavam seus lares onde construíram muito mais do que paredes e mordomia. Haviam criado VIDA. E pelo mesmo motivo que os pedia para manterem-se ali, deveriam sair.

Dona Elizabeth sempre fora completamente teimosa e acreditava fielmente que aquele mapa de tesouro herdado de seu avô era real. A ganância lhe falava mais alto do que qualquer outra coisa. Decidiu ficar ali à procura do baú enterrado no jardim. O marido bem que tentou algumas vezes convencê-la a entrar no carro, mas ela recusou-se. Martin amava sua mãe tanto quanto sua própria vida e não a abandonaria por nada.

Eu amava Martin. Com toda e qualquer força que havia dentro de mim, mas era jovem, jovem demais e prezava mais por minha própria vida. Não poderia ficar ali, não queria. Estava decidida a seguir em frente sem olhar para trás. Decidida a nunca mais por os pés ali, nem nunca voltar para ver aquela casinha azul destruída. Mas todas minhas certezas fugiram de mim quando o vi parado na rua, esperando que eu deixasse tudo para trás, que lhe desse a mão e dissesse que tudo ficaria bem.

Desta vez nada daria certo. Desta vez eu não seguraria sua mão para acalmá-lo. Minhas lágrimas cortavam a alma. Segui em direção ao carro, sem olhar uma única vez para trás. Ele fez a escolha de ficar, e agora eu decidia abandoná-lo.

Papai arrancou. Passamos por Martin sentado na rua. Ele chorava descontroladamente. Eu também me sentia assim. Que Deus o protegesse. Que Deus o protegesse muito bem!

Saímos vivos daquela tragédia sem nenhum arranhão sequer. As famílias que ficaram no local nunca mais foram encontradas. Durante cinco anos eu hesitei em perder qualquer noticiário da televisão, esperando que houvessem sobreviventes. Mas isso nunca aconteceu.

Talvez se tivéssemos ficado... Talvez se eu não tivesse o abandonado as coisas teriam sido diferentes. O mundo não parou para acolher minhas tristezas. Eu precisava continuar vivendo.

Quinze anos após a tragédia, duas famílias reuniam-se para a celebração de meu casamento com Derik. Nunca seríamos felizes. Eu sabia disso. Mas sua voz, seu jeito lembrava-me muito Martin. Eu o amava.

Durante todos os segundos do casamento, chorei baixinho. Não de emoção, mas de tristeza. Por que o abandonei lá? Fui fraca, covarde.

Derik e todo o resto esperavam que eu dissesse sim para o padre. Mas dessa vez não faria o lógico, porque o coração não conhece a razão.

Joguei o buquê no chão e sai calmamente pela porta da igreja. Ninguém nunca mais me veria. Nunca mais me controlariam.

Continuei caminhando sem rumo, até encontrar-me na beira do mar. As ondas tocavam a barra do vestido branco já sujo. Tentavam levá-lo para longe de mim. Um filme passava-se em minha mente.

O dia escureceu. Por entre as nuvens, fracos raios de sol tentavam iluminar os homens. Não havia ninguém além de mim naquela praia.

Alguns metros a frente, percebi que haviam pegadas marcadas na areia. Sem nenhuma razão, segui-as. Não muito longe dali, estava um garoto sentado no chão, com a cabeça baixa. Ele chorava descontroladamente. Tinha olhos penetrantes.

Aquela visão me deixara tão alucinada que não percebi o quanto a maré e a força das ondas haviam aumentado em todo aquele tempo. A imensidão do mar levou todas as lembranças consigo. Todas as histórias de amor eterno.

Eu continuei ali parada, buscando respostas para minhas covardias. Buscando respostas para tudo aquilo que nunca tive coragem de admitir.

16 de out. de 2009






Um suspiro corta o ar da sala. Ele me olha profundamente. Seus olhos me contam segredos nunca revelados. Suas mãos suadas e trêmulas aproximam-se do meu rosto, como uma forma de acalento.

Eu sei que ele espera uma pergunta minha. Algo que facilite o que precisa me contar. As coisas sempre funcionaram assim. Mas hoje estou muito cansada para joguinhos.

Me mantenho em silêncio.

Seu coração acelera conforme os ponteiros do relógio se arrastam. Ele atravessa a sala e vai até o quarto. Sei que isso não é um bom sinal, mas hoje estou cansada demais para perguntar-lhe o que houve. Ele volta com as malas na mão.

Tento entender o que está acontecendo entre nós. Até ontem éramos felizes e de repente tudo desmoronou bem na minha frente.

Estou cansada demais para pensar no assunto. Me viro para a televisão, em uma tentativa de o ignorar totalmente. Funcionou.
A porta bate. As malas somem junto com o homem da minha vida. Queria poder pará-lo e dizer o quanto o amei por todo esse tempo. Mas hoje estou cansada demais para isso.

Reminiscência






Os olhos acenderam-se como chamas de fogo, vibravam de felicidade ao ver imagens perdidas bem à sua frente. Um tom nostálgico tomava conta do pequeno apartamento em Campinas, onde Liliana dividia seu espaço com caixas e papéis antigos.


Passara semanas mexendo nas caixas de papelão, à procura de um documento que guardara antes da mudança. Talvez por obra do destino, ou simplesmente do acaso, encontrara uma foto envelhecida, já rasgada, de Leonardo, um garoto da escola, pelo qual fora apaixonada durante seis anos.


Apesar de possuir uma péssima memória, ela ainda lembrava-se do dia em que o vira pela primeira vez. Estava na porta da sala de aula, esperando Jimmy, seu melhor amigo, quando o viu passar pelo corredor, seguindo para a sala do fundo. Encantara-se não pelo seu andar, sua aparência ou seus lindos cabelos, mas sim pelo livro de terror que carregava cuidadosamente consigo.


Havia lido tantas vezes aquela obra, que poderia dizer as falas da personagem principal, e descrever o cenário todo. Não concentrara-se em mais nada naquele dia. Esperou no corredor até o ver novamente, seguindo-o com o olhar até onde podia alcançar. Ele nunca a vira. Não a conhecia, nem sabia seu nome. Não sabia seu signo, nem sua idade, mas ela nunca levara isso em conta. Sabia descrever cada fio de cabelo que ele possuía, sabia de seus gostos, idéias, vergonhas e atrações.


Foi assim durante os quatro anos do colegial. Ele lia, se divertia, e ela o observava de longe, bem longe. Nunca tomara coragem para dirigir sequer uma palavra a ele. Sentaram-se uma ou duas vezes um ao lado do outro, mas isso não passou de alguns olhares e risadas sem graça.


Apesar de conhecê-lo só de longe, sentia-se feliz toda vez que passava, mesmo sem olhar ou que dirigia-se a alguém que estava na mesma direção que ela. Mas um dia o sonho tem que acabar, porque ninguém pode sonhar para sempre. Isso aconteceu no final do terceiro ano, quando ela mudara-se para a capital, a fim de prestar vestibular para Literatura.


Para amenizar a saudade daquele sorriso, mandara revelar uma foto que batera dele enquanto fingia estudar para a prova do dia seguinte. Com o passar do tempo, as lembranças foram ficando para trás, e ela esquecera-se daquela foto em um cantinho embaixo da cama.


Agora tudo estava ali, vivo de novo. Por onde ele teria andado esse tempo todo?


Sentiu um aperto no coração, segurou firmemente a foto entre os dedos. Calmamente, seguiu até a lareira na sala.


Sua alma gritava, mas a razão tomou coragem e exaltou-se. Soltou a foto em direção ao fogo. Foi a última vez que viu Leonardo na vida.


Do outro lado do país, a foto de uma garota tímida encorajava secretamente um homem inseguro.

Crença


As velas já estavam acesas ao pé da santa. Não havia ninguém na igreja naquela tarde, ouvia-se apenas ruídos de carros e pessoas pela rua, tudo estava em paz. Lembro que fiquei sentada até mais tarde na calçada, estava distraída e nem percebi o tempo passando.

Quando o sol cedia seu lugar à lua, vi pela primeira vez naquele dia alguém entrando na igreja. Era uma mulher jovem, tinha sobre a cabeça um véu de renda preto e entre as mãos um terço. Entrou rapidamente pela porta, ajoelhou-se aos pés da santa e agradeceu sua gravidez. Foi então que lembrei de seu Leôncio, um morador do bairro, que havia contado tempos atrás sobre a mulher que não conseguia dar-lhe um filho. Agora finalmente o milagre havia sido feito.

Foi naquele mesmo dia que o futuro pai foi avisado que todos os homens que não tivessem filhos pequenos deveriam partir urgentemente para as fronteiras do país, que preparava-se para um conflito com as terras vizinhas. Na ausência de Rita, e sem saber de sua gravidez, ele escreveu-lhe um bilhete contando o que acontecera e partiu.

Ao ler a carta, Rita entrou em pânico. Tinha dois possíveis caminhos: esperar que o marido voltasse do combate, ou ir até lá, arriscando a vida do filho que tanto esperara. Não pensou duas vezes, correu ao encontro de seu homem.

A viagem foi longa, mas depois de alguns dias, Rita encontrou milhares de corpos pelo chão. Estava sentindo a morte à sua volta. E então, de repente os olhos encheram-se d'água, e o corpo estremeceu. A um metro de seus pés estava a cabeça do marido. O corpo encontrava-se ensanguentado logo adiante. Sentiu vontade de partir para sempre. Rita era uma mulher forte, mas no entanto, não haviam motivos para continuar vivendo. A santa acolheu suas preces.

A cabeça e o peito esquentaram, sentiu o corpo estremecendo mais uma vez. Havia levado dois tiros certeiros do inimigo. A última coisa que viu foi o rosto do marido, que parecia sorrir-lhe amorosamente.

15 de out. de 2009

Vagas memórias [baseado em fatos reais]


Ao movermos nossa mente para lugares e épocas distantes contruímos pouco a pouco uma mente repleta de memórias.

Memórias que permanecem por toda a vida, lembranças que serão brevemente contadas às jovens mentes curiosas, que continuarão o vasto círculo da vida.

Talvez minha avó jamais imaginasse que cada palavra sua tornava-se minha naquela tarde, e que sua memória ocuparia um lugar em minha mente. Quando as lembranças podem atravessar as barreiras do som, elas deixam de ser nossas e passam a ser do mundo, onde cada um transmite a vida através de singelas palavras.

"Tão puro era o ar que beijava meu rosto naquelas tardes de verão, trazia consigo uma paz inigualável, uma delicadeza que me fazia esquecer por breves minutos de todos os calos e machucados, de todas as dores e tristezas. Os vastos campos recheados de vida, tão cheios de desejos como mais ninguém notava, eram mais do que minha moradia. Eram minha vida."

Houve uma breve parada, como se a história tivesse sido apagada pelo tempo, como se restasse como consolo apenas curtos fragmentos da vida. Fui perdendo as esperanças, pensei que os relatos encerravam-se ali, no início. Palavras sem sentido saíram de minha boca apenas para romper o silêncio e então uma expressão diferenciada apareceu no rosto de minha avó.

"Talvez seja por essa pureza do campo que aqueles animais tenham aparecido ali. Seja esta ou qualquer outra a explicação correta, o fato está obviamente exposto. Aparecimentos como aquele vem apenas uma vez na vida, rapidamente, e se vão para sempre, levando um pouco de nós e nos deixando ricas lembranças, que nos acompanharão até onde nossa mente permitir."

A saudade abatia o sorriso contagiante de minha avó. Foi somente em consequência de outra breve parada que pude refletir na importância que aquele casal de "lobos ou cachorros" causaram em uma vida.

"Apareciam só à noite, brincavam e corriam pelo campo iluminado pela lua, depois sumiam e voltavam a aparecer somente no outro anoitecer. As balas dos caçadores jamais acertaram os ágeis corpos brancos, e o significativo aparecimento deles encerrou-se com o verão."

Vovó jamais voltou a vê-los. Desapareceram para sempre e tudo que restou foram suas lembranças.

As memórias às vezes levam parte de nossa vida para serem construídas, mas levam gerações para perderem-se no esquecimento.

Digo-lhes agora que as coisas encerram-se da mesma forma que iniciaram-se, sem motivo ou razão qualquer permanecem, nossas memórias, marcas de um tempo que nos acompanhará até o fim da vida.

Rebeca




O homem pensa que pode controlar tudo aquilo que o cerca, mas não sabe que na realidade, o todo que o controla.




Não havia sol. A lua não aparecera para iluminar os caminhos sombrios da noite. Não havia céu azul, tudo o que mostrava-se acima de todo e qualquer homem, era um vasto manto acinzentado que não diferenciava o dia da noite. Era assim que encerrava-se a vida do Rei Manoel, um bom homem que comandara seu país como cuidava de sua própria casa. Cada minuto que se passava deixava uma marca maior de desespero em Marjed, herdeiro do trono. Ao contrário dos homens de sua família, ele não almejava aquela vida. Mas esse era seu destino, e ele não fugiria disso nem que lhe custasse a própria cabeça.


Margareth, esposa de Manoel, convidara as mais belas jovens do reino para uma visita até o castelo, a fim de escolher a mais bela dama para tornar-se a nova rainha. Foram dias incansáveis de espera, no fim, haviam conhecido centenas de garotas imperfeitas, que não lhe agradaram. Quase sem esperança, mandou chamar a última dama, que atendia pelo nome de Alana.


Entrou gloriosamente pela porta da frente, os cabelos ruivos e lisos marcavam sua pequena cintura, os olhos verdes contrastavam com a brancura da pele. Era cheia de bons modos e logo agradou Margareth. Sem hesitar escolheu a jovem para tomar seu lugar.


Durante muitos anos Alana fora o exemplo para todas as mulheres do reino. Mas não sabia ela que o homem não controla o coração. E exatamente por isso, estava prestes a destruir toda sua vida de glamour.


Quando Catarina, a empregada e confidente de Alana adoecera, tudo estava prestes a mudar. Ela pedira a rainha que não a substituísse, que gostaria de manter seu cargo ali até que não pudesse mais trabalhar na velhice. Recomendara o filho Richard, um bom garoto que aprendera tudo o que precisava saber com a mãe. Alana não hesitou na resposta. Aceitou a proposta aliviada, pois sabia que estaria muito bem acompanhada por qualquer pessoa da família de Catarina.


O tempo passava devagar para eles. Richard era um bom homem, muito inteligente e de aparência encantadora. Expirava confiança nos olhos e na fala, isso agradava Alana. Agradava tanto que em poucos dias os dois tornaram-se confidentes. Como o marido estava sempre muito ocupado com seus afazeres no reino, ela passava a maior parte do dia ao lado do empregado.


Uma certa tarde ensolarada de primavera, saíram os dois para caminhar no vasto jardim do castelo. Encontraram um cavalo solto, perto do chafariz, e no calor da conversa, ela confessara a ele que seu maior desejo era subir ao lombo de um alazão. Achava que isso lhe traria paz e bem estar.


De prontidão Richard oferecera-se para ensiná-la a cavalgar. Animaram-se tanto com a idéia que perderam a hora de voltar. Quando deram-se conta, já havia anoitecido, e os trabalhadores voltavam para suas singelas casas.


As coisas aconteciam rápido entre eles. Não demorou muito para que Alana aprendesse andar a cavalo. Em pouco tempo já estavam os dois cavalgando pelo vasto jardim que cercava o castelo. Divertiam-se tanto que desejavam que o dia tomasse o lugar da noite.


Quando o coração do homem controla seu corpo, muitas coisas podem acontecer, contrariando aquilo que é correto para a razão humana.


O sol estava se pondo, mas nenhum dos dois prontificou-se para abandonar a diversão. Sentaram-se na grama, para um breve descanso. Os ruivos cabelos de Alana dançavam com o vento e o sorriso de satisfação que mantinha no rosto, a fazia parecer ainda mais bela do que já era. Foi somente naquele dia que Richard percebera o quão interessante era sua patroa.


Olhara-a com outros olhos. Estava vendo-a como mulher, e não mais como rainha. Seu sorriso, seus cabelos, tudo aquilo o deixava enlouquecido. Não continha-se dentro de si. Foi naquele pôr-do-sol que o primeiro beijo aconteceu, e eles perceberam que já era tarde demais para desistir. Haviam construídos laços de amor, sobre os de amizade. Conheciam-se tão bem quanto eles mesmos podiam conhecer-se.


Com esses pensamentos claros, Richard pediu a Alana que fugissem juntos, para construírem uma vida, uma família. Sabia que correriam riscos, e que se fossem encontrados seriam mortos na forca, mas sabia além de tudo que viver sem a companhia de Alana seria como não viver.


O amor cegara qualquer insegurança que poderiam ter dentro de si mesmo. Fugiram para longe. Muito longe.


O filho que Marjed sempre desejara estava agora no ventre de sua amada esposa, mas ela já não o pertencia mais, muito menos o herdeiro que estava para nascer. O rei sabia para onde a mulher havia fugido, sabia da gravidez e da felicidade do casal, mas ao contrário do que muitos esperavam, não mandou buscá-los, nem os levou à forca. Acima de qualquer mágoa que pudesse ter de Alana, estava seu generoso amor pela esposa, que um dia completara sua vida e fora sua alegria.


Ele sabia que não teria coragem de machucá-la, mas o desgosto de saber que a mulher engravidara de outro o deixava cada vez mais cego. Um dos conselheiros do reino, certo dia lhe contou sobre uma feiticeira, que consertava e estragava vidas e almas com seus feitiços e poções. Descrente da realidade dos feitiços mandou que ela amaldiçoasse a criança que estava no ventre de sua mulher.


O que era um sonho transformara-se em preocupação. Quando a menina finalmente nascera, Marjed já havia esquecido-se do fato da feiticeira. Porém, Alana e Richard estavam prestes a conviver com a maldição para o resto de suas vidas.


Rebeca era uma criança linda, puxara o melhor da aparência dos pais. O lamentável foi que nascera cega, portanto nunca poderia observar a beleza do campo que a cercava. Para não prender-lhe sempre às suas vistas, Alana distribuía todos os dias diferentes objetos com fortes fragrâncias diferentes pelo campo. Ensinara muito bem à filha cada lugar correspondente ao cheiro, assim a menina poderia passear pelo campo sem se perder.


Esse método sempre funcionara muito bem, mas todos os seres humanos um dia erram, e o maior erro de Alana aconteceu em uma tarde de outono. O marido lhe propora uma cavalgada até a cidade, para que comprassem comida e revessem alguns lugares que deixavam saudade. Rebeca não gostava da cidade, por isso decidiu ficar em casa até que eles voltassem. A mãe animara-se tanto com o passeio que se esquecera de trocar os sinalizadores com fragrâncias para a filha.


Assim que partiram, Rebeca decidiu caminhar um pouco pelo campo para relaxar. Como os objetos passaram o dia no sol e no vento, perderam as fortes fragrâncias, ocasionando um desastre para a menina. Estava perdida, longe de casa e sem saber para onde ir. Deu alguns passos para a frente, até sentir algumas rochas.


A noite já havia chegado com sua grandiosidade e o tempo que fechara-se durante o dia, abriu espaço para a chuva. Rebeca percebeu que estava em frente à uma pequena caverna e para proteger-se da chuva, acabou indo abrigar-se embaixo das rochas.


No fundo da caverna havia uma fenda, onde o sol tocava durante toda a manhã. Ali o solo era úmido, e concentrava uma quantidade grande de água constantemente. Com o tempo, nascera um pé de junco que crescera rente às pedras.


O vento fazia com que o junco balançasse, tocando as rochas e troncos que haviam no local. Faziam um som diferente, e no desequilíbrio emocional que Rebeca encontrava-se, acreditou que aquilo tratava-se de algum animal.


Desde pequena sempre fora acostumada a conviver com os animais, por isso aprendera a conversar e entendê-los muito bem. Ficara alguns dias ali, presa naquela caverna, com uma única companhia, que apelidara de James.


Nos dias em que havia pouco vento, James ficava calado por muito tempo. Rebeca sempre aconselhava-o a respirar fundo para amenizar seus problemas emocionais e voltar a conversar com ela. Na verdade, ela sentia que no fundo quem deveria fazê-lo era ela mesma. Sentia-se muito sozinha e temia continuar ali por muito tempo.


Nas setenta e duas horas que estava ali, havia apenas tomado água da chuva. Por esse motivo sentia-se tão fraca fisicamente quanto espiritualmente. Desejava que alguém viesse buscá-la logo. James não abria a boca há algumas horas e isso estava preocupando-a.


Sentada no chão, com as mãos apoiadas na parede de pedra as suas costas, foi arrastando-se até a direção do amigo, a fim de tocar-lhe carinhosamente até que estabelecessem uma boa conversa.


Levou alguns minutos para chegar até o fim da caverna, e quando completara o caminho, esticando a mão até o amigo, descobriu que James não era um animal, nem um humano, mas sim alguns juncos que batiam contra as rochas provocando sons.


Ficara tão chocada com a descoberta que acreditara fielmente que estava louca. Passava todo o tempo sentada no fundo da caverna, sem mexer-se e quase nem piscava. Comportava-se como um cadáver.


Quatro dias antes de todos aqueles acontecimentos, os pais de Rebeca ao voltarem para casa encontraram um pedaço do vestido da filha no chão. Alguns lobos rondavam a casa e o casal acreditara que a menina havia sido o almoço da matilha. Na realidade, quando a menina perdera-se, apenas enganchou o vestido em alguns espinhos de uma roseira. Richard estava tão arrasado com a perda da filha que resolveu levar Alana embora daquela casa, a fim de esquecerem as tristezas.


Um casal de camponeses mudara-se para a cabana da família. Não demorou muito para encontrarem a jovenzinha na caverna, mas hesitaram em tocá-la. Olharam-na calmamente, chamaram-na e nada acontecia. Por fim, depois de algumas horas de observação, alegaram que a menina não estava viva e simplesmente fecharam a entrada da caverna com algumas rochas.


Rebeca ainda respirava, ao perceber o engano dos camponeses, largou-se para as trevas, sem lutar para sobreviver. Dois dias depois, não respirava mais. O tempo passa depressa quando não estamos mais aqui para olhar para os ponteiros do relógio correndo em direção à morte.


O local ficara desabitado por um longo tempo, até que alguns arqueólogos foram até o bosque atrás de vestígios indígenas que faziam-se presentes naquela região. Lionel, um homem sábio de aproximadamente quarenta anos, encontrara uma caverna coberta de limo e algumas plantas ao redor. Sua curiosidade era grande, decidira abri-la para averiguar por dentro. Chamou alguns colegas e empurraram a rocha que tampava a entrada da caverna. Lá dentro encontraram um cadáver com longos cabelos ruivos sobre o vestido branco já encardido e apodrecido. Em sua volta haviam muitos pés de junco, com quase um metro de altura. Apesar do local manter-se bem seco, as plantas eram muito vivas, com ar de saúde. Tiraram o cadáver da caverna, levando-a para o carro, onde examinariam cuidadosamente, a fim de levá-lo para o museu. Lionel foi o último a abandonar a caverna. Quando a menina já havia sido colocada na cabine, virou para a escuridão embaixo das rochas e percebeu que o junco estava deitado ao chão, morto.


Anos passaram-se e nada mais cresceu naquela caverna. O junco ia degradando-se aos poucos, na triste solidão da caverna.

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