15 de out. de 2009

Rebeca




O homem pensa que pode controlar tudo aquilo que o cerca, mas não sabe que na realidade, o todo que o controla.




Não havia sol. A lua não aparecera para iluminar os caminhos sombrios da noite. Não havia céu azul, tudo o que mostrava-se acima de todo e qualquer homem, era um vasto manto acinzentado que não diferenciava o dia da noite. Era assim que encerrava-se a vida do Rei Manoel, um bom homem que comandara seu país como cuidava de sua própria casa. Cada minuto que se passava deixava uma marca maior de desespero em Marjed, herdeiro do trono. Ao contrário dos homens de sua família, ele não almejava aquela vida. Mas esse era seu destino, e ele não fugiria disso nem que lhe custasse a própria cabeça.


Margareth, esposa de Manoel, convidara as mais belas jovens do reino para uma visita até o castelo, a fim de escolher a mais bela dama para tornar-se a nova rainha. Foram dias incansáveis de espera, no fim, haviam conhecido centenas de garotas imperfeitas, que não lhe agradaram. Quase sem esperança, mandou chamar a última dama, que atendia pelo nome de Alana.


Entrou gloriosamente pela porta da frente, os cabelos ruivos e lisos marcavam sua pequena cintura, os olhos verdes contrastavam com a brancura da pele. Era cheia de bons modos e logo agradou Margareth. Sem hesitar escolheu a jovem para tomar seu lugar.


Durante muitos anos Alana fora o exemplo para todas as mulheres do reino. Mas não sabia ela que o homem não controla o coração. E exatamente por isso, estava prestes a destruir toda sua vida de glamour.


Quando Catarina, a empregada e confidente de Alana adoecera, tudo estava prestes a mudar. Ela pedira a rainha que não a substituísse, que gostaria de manter seu cargo ali até que não pudesse mais trabalhar na velhice. Recomendara o filho Richard, um bom garoto que aprendera tudo o que precisava saber com a mãe. Alana não hesitou na resposta. Aceitou a proposta aliviada, pois sabia que estaria muito bem acompanhada por qualquer pessoa da família de Catarina.


O tempo passava devagar para eles. Richard era um bom homem, muito inteligente e de aparência encantadora. Expirava confiança nos olhos e na fala, isso agradava Alana. Agradava tanto que em poucos dias os dois tornaram-se confidentes. Como o marido estava sempre muito ocupado com seus afazeres no reino, ela passava a maior parte do dia ao lado do empregado.


Uma certa tarde ensolarada de primavera, saíram os dois para caminhar no vasto jardim do castelo. Encontraram um cavalo solto, perto do chafariz, e no calor da conversa, ela confessara a ele que seu maior desejo era subir ao lombo de um alazão. Achava que isso lhe traria paz e bem estar.


De prontidão Richard oferecera-se para ensiná-la a cavalgar. Animaram-se tanto com a idéia que perderam a hora de voltar. Quando deram-se conta, já havia anoitecido, e os trabalhadores voltavam para suas singelas casas.


As coisas aconteciam rápido entre eles. Não demorou muito para que Alana aprendesse andar a cavalo. Em pouco tempo já estavam os dois cavalgando pelo vasto jardim que cercava o castelo. Divertiam-se tanto que desejavam que o dia tomasse o lugar da noite.


Quando o coração do homem controla seu corpo, muitas coisas podem acontecer, contrariando aquilo que é correto para a razão humana.


O sol estava se pondo, mas nenhum dos dois prontificou-se para abandonar a diversão. Sentaram-se na grama, para um breve descanso. Os ruivos cabelos de Alana dançavam com o vento e o sorriso de satisfação que mantinha no rosto, a fazia parecer ainda mais bela do que já era. Foi somente naquele dia que Richard percebera o quão interessante era sua patroa.


Olhara-a com outros olhos. Estava vendo-a como mulher, e não mais como rainha. Seu sorriso, seus cabelos, tudo aquilo o deixava enlouquecido. Não continha-se dentro de si. Foi naquele pôr-do-sol que o primeiro beijo aconteceu, e eles perceberam que já era tarde demais para desistir. Haviam construídos laços de amor, sobre os de amizade. Conheciam-se tão bem quanto eles mesmos podiam conhecer-se.


Com esses pensamentos claros, Richard pediu a Alana que fugissem juntos, para construírem uma vida, uma família. Sabia que correriam riscos, e que se fossem encontrados seriam mortos na forca, mas sabia além de tudo que viver sem a companhia de Alana seria como não viver.


O amor cegara qualquer insegurança que poderiam ter dentro de si mesmo. Fugiram para longe. Muito longe.


O filho que Marjed sempre desejara estava agora no ventre de sua amada esposa, mas ela já não o pertencia mais, muito menos o herdeiro que estava para nascer. O rei sabia para onde a mulher havia fugido, sabia da gravidez e da felicidade do casal, mas ao contrário do que muitos esperavam, não mandou buscá-los, nem os levou à forca. Acima de qualquer mágoa que pudesse ter de Alana, estava seu generoso amor pela esposa, que um dia completara sua vida e fora sua alegria.


Ele sabia que não teria coragem de machucá-la, mas o desgosto de saber que a mulher engravidara de outro o deixava cada vez mais cego. Um dos conselheiros do reino, certo dia lhe contou sobre uma feiticeira, que consertava e estragava vidas e almas com seus feitiços e poções. Descrente da realidade dos feitiços mandou que ela amaldiçoasse a criança que estava no ventre de sua mulher.


O que era um sonho transformara-se em preocupação. Quando a menina finalmente nascera, Marjed já havia esquecido-se do fato da feiticeira. Porém, Alana e Richard estavam prestes a conviver com a maldição para o resto de suas vidas.


Rebeca era uma criança linda, puxara o melhor da aparência dos pais. O lamentável foi que nascera cega, portanto nunca poderia observar a beleza do campo que a cercava. Para não prender-lhe sempre às suas vistas, Alana distribuía todos os dias diferentes objetos com fortes fragrâncias diferentes pelo campo. Ensinara muito bem à filha cada lugar correspondente ao cheiro, assim a menina poderia passear pelo campo sem se perder.


Esse método sempre funcionara muito bem, mas todos os seres humanos um dia erram, e o maior erro de Alana aconteceu em uma tarde de outono. O marido lhe propora uma cavalgada até a cidade, para que comprassem comida e revessem alguns lugares que deixavam saudade. Rebeca não gostava da cidade, por isso decidiu ficar em casa até que eles voltassem. A mãe animara-se tanto com o passeio que se esquecera de trocar os sinalizadores com fragrâncias para a filha.


Assim que partiram, Rebeca decidiu caminhar um pouco pelo campo para relaxar. Como os objetos passaram o dia no sol e no vento, perderam as fortes fragrâncias, ocasionando um desastre para a menina. Estava perdida, longe de casa e sem saber para onde ir. Deu alguns passos para a frente, até sentir algumas rochas.


A noite já havia chegado com sua grandiosidade e o tempo que fechara-se durante o dia, abriu espaço para a chuva. Rebeca percebeu que estava em frente à uma pequena caverna e para proteger-se da chuva, acabou indo abrigar-se embaixo das rochas.


No fundo da caverna havia uma fenda, onde o sol tocava durante toda a manhã. Ali o solo era úmido, e concentrava uma quantidade grande de água constantemente. Com o tempo, nascera um pé de junco que crescera rente às pedras.


O vento fazia com que o junco balançasse, tocando as rochas e troncos que haviam no local. Faziam um som diferente, e no desequilíbrio emocional que Rebeca encontrava-se, acreditou que aquilo tratava-se de algum animal.


Desde pequena sempre fora acostumada a conviver com os animais, por isso aprendera a conversar e entendê-los muito bem. Ficara alguns dias ali, presa naquela caverna, com uma única companhia, que apelidara de James.


Nos dias em que havia pouco vento, James ficava calado por muito tempo. Rebeca sempre aconselhava-o a respirar fundo para amenizar seus problemas emocionais e voltar a conversar com ela. Na verdade, ela sentia que no fundo quem deveria fazê-lo era ela mesma. Sentia-se muito sozinha e temia continuar ali por muito tempo.


Nas setenta e duas horas que estava ali, havia apenas tomado água da chuva. Por esse motivo sentia-se tão fraca fisicamente quanto espiritualmente. Desejava que alguém viesse buscá-la logo. James não abria a boca há algumas horas e isso estava preocupando-a.


Sentada no chão, com as mãos apoiadas na parede de pedra as suas costas, foi arrastando-se até a direção do amigo, a fim de tocar-lhe carinhosamente até que estabelecessem uma boa conversa.


Levou alguns minutos para chegar até o fim da caverna, e quando completara o caminho, esticando a mão até o amigo, descobriu que James não era um animal, nem um humano, mas sim alguns juncos que batiam contra as rochas provocando sons.


Ficara tão chocada com a descoberta que acreditara fielmente que estava louca. Passava todo o tempo sentada no fundo da caverna, sem mexer-se e quase nem piscava. Comportava-se como um cadáver.


Quatro dias antes de todos aqueles acontecimentos, os pais de Rebeca ao voltarem para casa encontraram um pedaço do vestido da filha no chão. Alguns lobos rondavam a casa e o casal acreditara que a menina havia sido o almoço da matilha. Na realidade, quando a menina perdera-se, apenas enganchou o vestido em alguns espinhos de uma roseira. Richard estava tão arrasado com a perda da filha que resolveu levar Alana embora daquela casa, a fim de esquecerem as tristezas.


Um casal de camponeses mudara-se para a cabana da família. Não demorou muito para encontrarem a jovenzinha na caverna, mas hesitaram em tocá-la. Olharam-na calmamente, chamaram-na e nada acontecia. Por fim, depois de algumas horas de observação, alegaram que a menina não estava viva e simplesmente fecharam a entrada da caverna com algumas rochas.


Rebeca ainda respirava, ao perceber o engano dos camponeses, largou-se para as trevas, sem lutar para sobreviver. Dois dias depois, não respirava mais. O tempo passa depressa quando não estamos mais aqui para olhar para os ponteiros do relógio correndo em direção à morte.


O local ficara desabitado por um longo tempo, até que alguns arqueólogos foram até o bosque atrás de vestígios indígenas que faziam-se presentes naquela região. Lionel, um homem sábio de aproximadamente quarenta anos, encontrara uma caverna coberta de limo e algumas plantas ao redor. Sua curiosidade era grande, decidira abri-la para averiguar por dentro. Chamou alguns colegas e empurraram a rocha que tampava a entrada da caverna. Lá dentro encontraram um cadáver com longos cabelos ruivos sobre o vestido branco já encardido e apodrecido. Em sua volta haviam muitos pés de junco, com quase um metro de altura. Apesar do local manter-se bem seco, as plantas eram muito vivas, com ar de saúde. Tiraram o cadáver da caverna, levando-a para o carro, onde examinariam cuidadosamente, a fim de levá-lo para o museu. Lionel foi o último a abandonar a caverna. Quando a menina já havia sido colocada na cabine, virou para a escuridão embaixo das rochas e percebeu que o junco estava deitado ao chão, morto.


Anos passaram-se e nada mais cresceu naquela caverna. O junco ia degradando-se aos poucos, na triste solidão da caverna.

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