17 de out. de 2009

Pusilânime



Minha última lágrima caía quando o vi de longe, bem longe. Estava já com a mala nas mãos, pronta para entrar no carro e partir para um destino que nem eu mesma sabia ao certo qual era. Mas aqueles olhos fixados em mim prendiam-me ali como correntes podem prender um fugitivo. Eu não podia parar de olhá-lo. Eu não conseguia parar de olhá-lo.

Ele entendia o que estava fazendo com meu corpo naquele momento. Sabia o quão doloroso aquilo estava sendo pra mim, mas ele não desistiria tão facilmente. Ficamos ali perplexos por um longo tempo, separados por metros de distância que iam diminuindo cada vez que podia tocá-lo com pensamentos.

Era tarde para qualquer coisa. O vento começava a ficar mais forte, precisávamos sair dali, voltar para casa. Eu poderia enfrentar qualquer tornado só para ficar ali admirando seus olhos tristes e seu cabelo movendo-se com o vento, revelando em poucos centímetros o rosto de um homem.

A cada passo que dava em direção ao carro de papai, o vento gritava-me para ficar. As nuvens moviam-se nervosamente no céu como pedido de espera. As ruas estavam vazias e no rádio locutores avisavam seguidamente que os moradores da pequena cidade de Linab deveriam seguir rapidamente para as fronteiras, mantendo-se longe do local, que em poucos minutos seria destruído por um tornado.

As pessoas tendem a proteger aquilo que lhes pertence, assim como uma mãe que se arrisca pelo filho. Muitos moradores abandonavam seus lares onde construíram muito mais do que paredes e mordomia. Haviam criado VIDA. E pelo mesmo motivo que os pedia para manterem-se ali, deveriam sair.

Dona Elizabeth sempre fora completamente teimosa e acreditava fielmente que aquele mapa de tesouro herdado de seu avô era real. A ganância lhe falava mais alto do que qualquer outra coisa. Decidiu ficar ali à procura do baú enterrado no jardim. O marido bem que tentou algumas vezes convencê-la a entrar no carro, mas ela recusou-se. Martin amava sua mãe tanto quanto sua própria vida e não a abandonaria por nada.

Eu amava Martin. Com toda e qualquer força que havia dentro de mim, mas era jovem, jovem demais e prezava mais por minha própria vida. Não poderia ficar ali, não queria. Estava decidida a seguir em frente sem olhar para trás. Decidida a nunca mais por os pés ali, nem nunca voltar para ver aquela casinha azul destruída. Mas todas minhas certezas fugiram de mim quando o vi parado na rua, esperando que eu deixasse tudo para trás, que lhe desse a mão e dissesse que tudo ficaria bem.

Desta vez nada daria certo. Desta vez eu não seguraria sua mão para acalmá-lo. Minhas lágrimas cortavam a alma. Segui em direção ao carro, sem olhar uma única vez para trás. Ele fez a escolha de ficar, e agora eu decidia abandoná-lo.

Papai arrancou. Passamos por Martin sentado na rua. Ele chorava descontroladamente. Eu também me sentia assim. Que Deus o protegesse. Que Deus o protegesse muito bem!

Saímos vivos daquela tragédia sem nenhum arranhão sequer. As famílias que ficaram no local nunca mais foram encontradas. Durante cinco anos eu hesitei em perder qualquer noticiário da televisão, esperando que houvessem sobreviventes. Mas isso nunca aconteceu.

Talvez se tivéssemos ficado... Talvez se eu não tivesse o abandonado as coisas teriam sido diferentes. O mundo não parou para acolher minhas tristezas. Eu precisava continuar vivendo.

Quinze anos após a tragédia, duas famílias reuniam-se para a celebração de meu casamento com Derik. Nunca seríamos felizes. Eu sabia disso. Mas sua voz, seu jeito lembrava-me muito Martin. Eu o amava.

Durante todos os segundos do casamento, chorei baixinho. Não de emoção, mas de tristeza. Por que o abandonei lá? Fui fraca, covarde.

Derik e todo o resto esperavam que eu dissesse sim para o padre. Mas dessa vez não faria o lógico, porque o coração não conhece a razão.

Joguei o buquê no chão e sai calmamente pela porta da igreja. Ninguém nunca mais me veria. Nunca mais me controlariam.

Continuei caminhando sem rumo, até encontrar-me na beira do mar. As ondas tocavam a barra do vestido branco já sujo. Tentavam levá-lo para longe de mim. Um filme passava-se em minha mente.

O dia escureceu. Por entre as nuvens, fracos raios de sol tentavam iluminar os homens. Não havia ninguém além de mim naquela praia.

Alguns metros a frente, percebi que haviam pegadas marcadas na areia. Sem nenhuma razão, segui-as. Não muito longe dali, estava um garoto sentado no chão, com a cabeça baixa. Ele chorava descontroladamente. Tinha olhos penetrantes.

Aquela visão me deixara tão alucinada que não percebi o quanto a maré e a força das ondas haviam aumentado em todo aquele tempo. A imensidão do mar levou todas as lembranças consigo. Todas as histórias de amor eterno.

Eu continuei ali parada, buscando respostas para minhas covardias. Buscando respostas para tudo aquilo que nunca tive coragem de admitir.

16 de out. de 2009






Um suspiro corta o ar da sala. Ele me olha profundamente. Seus olhos me contam segredos nunca revelados. Suas mãos suadas e trêmulas aproximam-se do meu rosto, como uma forma de acalento.

Eu sei que ele espera uma pergunta minha. Algo que facilite o que precisa me contar. As coisas sempre funcionaram assim. Mas hoje estou muito cansada para joguinhos.

Me mantenho em silêncio.

Seu coração acelera conforme os ponteiros do relógio se arrastam. Ele atravessa a sala e vai até o quarto. Sei que isso não é um bom sinal, mas hoje estou cansada demais para perguntar-lhe o que houve. Ele volta com as malas na mão.

Tento entender o que está acontecendo entre nós. Até ontem éramos felizes e de repente tudo desmoronou bem na minha frente.

Estou cansada demais para pensar no assunto. Me viro para a televisão, em uma tentativa de o ignorar totalmente. Funcionou.
A porta bate. As malas somem junto com o homem da minha vida. Queria poder pará-lo e dizer o quanto o amei por todo esse tempo. Mas hoje estou cansada demais para isso.

Reminiscência






Os olhos acenderam-se como chamas de fogo, vibravam de felicidade ao ver imagens perdidas bem à sua frente. Um tom nostálgico tomava conta do pequeno apartamento em Campinas, onde Liliana dividia seu espaço com caixas e papéis antigos.


Passara semanas mexendo nas caixas de papelão, à procura de um documento que guardara antes da mudança. Talvez por obra do destino, ou simplesmente do acaso, encontrara uma foto envelhecida, já rasgada, de Leonardo, um garoto da escola, pelo qual fora apaixonada durante seis anos.


Apesar de possuir uma péssima memória, ela ainda lembrava-se do dia em que o vira pela primeira vez. Estava na porta da sala de aula, esperando Jimmy, seu melhor amigo, quando o viu passar pelo corredor, seguindo para a sala do fundo. Encantara-se não pelo seu andar, sua aparência ou seus lindos cabelos, mas sim pelo livro de terror que carregava cuidadosamente consigo.


Havia lido tantas vezes aquela obra, que poderia dizer as falas da personagem principal, e descrever o cenário todo. Não concentrara-se em mais nada naquele dia. Esperou no corredor até o ver novamente, seguindo-o com o olhar até onde podia alcançar. Ele nunca a vira. Não a conhecia, nem sabia seu nome. Não sabia seu signo, nem sua idade, mas ela nunca levara isso em conta. Sabia descrever cada fio de cabelo que ele possuía, sabia de seus gostos, idéias, vergonhas e atrações.


Foi assim durante os quatro anos do colegial. Ele lia, se divertia, e ela o observava de longe, bem longe. Nunca tomara coragem para dirigir sequer uma palavra a ele. Sentaram-se uma ou duas vezes um ao lado do outro, mas isso não passou de alguns olhares e risadas sem graça.


Apesar de conhecê-lo só de longe, sentia-se feliz toda vez que passava, mesmo sem olhar ou que dirigia-se a alguém que estava na mesma direção que ela. Mas um dia o sonho tem que acabar, porque ninguém pode sonhar para sempre. Isso aconteceu no final do terceiro ano, quando ela mudara-se para a capital, a fim de prestar vestibular para Literatura.


Para amenizar a saudade daquele sorriso, mandara revelar uma foto que batera dele enquanto fingia estudar para a prova do dia seguinte. Com o passar do tempo, as lembranças foram ficando para trás, e ela esquecera-se daquela foto em um cantinho embaixo da cama.


Agora tudo estava ali, vivo de novo. Por onde ele teria andado esse tempo todo?


Sentiu um aperto no coração, segurou firmemente a foto entre os dedos. Calmamente, seguiu até a lareira na sala.


Sua alma gritava, mas a razão tomou coragem e exaltou-se. Soltou a foto em direção ao fogo. Foi a última vez que viu Leonardo na vida.


Do outro lado do país, a foto de uma garota tímida encorajava secretamente um homem inseguro.

Crença


As velas já estavam acesas ao pé da santa. Não havia ninguém na igreja naquela tarde, ouvia-se apenas ruídos de carros e pessoas pela rua, tudo estava em paz. Lembro que fiquei sentada até mais tarde na calçada, estava distraída e nem percebi o tempo passando.

Quando o sol cedia seu lugar à lua, vi pela primeira vez naquele dia alguém entrando na igreja. Era uma mulher jovem, tinha sobre a cabeça um véu de renda preto e entre as mãos um terço. Entrou rapidamente pela porta, ajoelhou-se aos pés da santa e agradeceu sua gravidez. Foi então que lembrei de seu Leôncio, um morador do bairro, que havia contado tempos atrás sobre a mulher que não conseguia dar-lhe um filho. Agora finalmente o milagre havia sido feito.

Foi naquele mesmo dia que o futuro pai foi avisado que todos os homens que não tivessem filhos pequenos deveriam partir urgentemente para as fronteiras do país, que preparava-se para um conflito com as terras vizinhas. Na ausência de Rita, e sem saber de sua gravidez, ele escreveu-lhe um bilhete contando o que acontecera e partiu.

Ao ler a carta, Rita entrou em pânico. Tinha dois possíveis caminhos: esperar que o marido voltasse do combate, ou ir até lá, arriscando a vida do filho que tanto esperara. Não pensou duas vezes, correu ao encontro de seu homem.

A viagem foi longa, mas depois de alguns dias, Rita encontrou milhares de corpos pelo chão. Estava sentindo a morte à sua volta. E então, de repente os olhos encheram-se d'água, e o corpo estremeceu. A um metro de seus pés estava a cabeça do marido. O corpo encontrava-se ensanguentado logo adiante. Sentiu vontade de partir para sempre. Rita era uma mulher forte, mas no entanto, não haviam motivos para continuar vivendo. A santa acolheu suas preces.

A cabeça e o peito esquentaram, sentiu o corpo estremecendo mais uma vez. Havia levado dois tiros certeiros do inimigo. A última coisa que viu foi o rosto do marido, que parecia sorrir-lhe amorosamente.

15 de out. de 2009

Vagas memórias [baseado em fatos reais]


Ao movermos nossa mente para lugares e épocas distantes contruímos pouco a pouco uma mente repleta de memórias.

Memórias que permanecem por toda a vida, lembranças que serão brevemente contadas às jovens mentes curiosas, que continuarão o vasto círculo da vida.

Talvez minha avó jamais imaginasse que cada palavra sua tornava-se minha naquela tarde, e que sua memória ocuparia um lugar em minha mente. Quando as lembranças podem atravessar as barreiras do som, elas deixam de ser nossas e passam a ser do mundo, onde cada um transmite a vida através de singelas palavras.

"Tão puro era o ar que beijava meu rosto naquelas tardes de verão, trazia consigo uma paz inigualável, uma delicadeza que me fazia esquecer por breves minutos de todos os calos e machucados, de todas as dores e tristezas. Os vastos campos recheados de vida, tão cheios de desejos como mais ninguém notava, eram mais do que minha moradia. Eram minha vida."

Houve uma breve parada, como se a história tivesse sido apagada pelo tempo, como se restasse como consolo apenas curtos fragmentos da vida. Fui perdendo as esperanças, pensei que os relatos encerravam-se ali, no início. Palavras sem sentido saíram de minha boca apenas para romper o silêncio e então uma expressão diferenciada apareceu no rosto de minha avó.

"Talvez seja por essa pureza do campo que aqueles animais tenham aparecido ali. Seja esta ou qualquer outra a explicação correta, o fato está obviamente exposto. Aparecimentos como aquele vem apenas uma vez na vida, rapidamente, e se vão para sempre, levando um pouco de nós e nos deixando ricas lembranças, que nos acompanharão até onde nossa mente permitir."

A saudade abatia o sorriso contagiante de minha avó. Foi somente em consequência de outra breve parada que pude refletir na importância que aquele casal de "lobos ou cachorros" causaram em uma vida.

"Apareciam só à noite, brincavam e corriam pelo campo iluminado pela lua, depois sumiam e voltavam a aparecer somente no outro anoitecer. As balas dos caçadores jamais acertaram os ágeis corpos brancos, e o significativo aparecimento deles encerrou-se com o verão."

Vovó jamais voltou a vê-los. Desapareceram para sempre e tudo que restou foram suas lembranças.

As memórias às vezes levam parte de nossa vida para serem construídas, mas levam gerações para perderem-se no esquecimento.

Digo-lhes agora que as coisas encerram-se da mesma forma que iniciaram-se, sem motivo ou razão qualquer permanecem, nossas memórias, marcas de um tempo que nos acompanhará até o fim da vida.

Rebeca




O homem pensa que pode controlar tudo aquilo que o cerca, mas não sabe que na realidade, o todo que o controla.




Não havia sol. A lua não aparecera para iluminar os caminhos sombrios da noite. Não havia céu azul, tudo o que mostrava-se acima de todo e qualquer homem, era um vasto manto acinzentado que não diferenciava o dia da noite. Era assim que encerrava-se a vida do Rei Manoel, um bom homem que comandara seu país como cuidava de sua própria casa. Cada minuto que se passava deixava uma marca maior de desespero em Marjed, herdeiro do trono. Ao contrário dos homens de sua família, ele não almejava aquela vida. Mas esse era seu destino, e ele não fugiria disso nem que lhe custasse a própria cabeça.


Margareth, esposa de Manoel, convidara as mais belas jovens do reino para uma visita até o castelo, a fim de escolher a mais bela dama para tornar-se a nova rainha. Foram dias incansáveis de espera, no fim, haviam conhecido centenas de garotas imperfeitas, que não lhe agradaram. Quase sem esperança, mandou chamar a última dama, que atendia pelo nome de Alana.


Entrou gloriosamente pela porta da frente, os cabelos ruivos e lisos marcavam sua pequena cintura, os olhos verdes contrastavam com a brancura da pele. Era cheia de bons modos e logo agradou Margareth. Sem hesitar escolheu a jovem para tomar seu lugar.


Durante muitos anos Alana fora o exemplo para todas as mulheres do reino. Mas não sabia ela que o homem não controla o coração. E exatamente por isso, estava prestes a destruir toda sua vida de glamour.


Quando Catarina, a empregada e confidente de Alana adoecera, tudo estava prestes a mudar. Ela pedira a rainha que não a substituísse, que gostaria de manter seu cargo ali até que não pudesse mais trabalhar na velhice. Recomendara o filho Richard, um bom garoto que aprendera tudo o que precisava saber com a mãe. Alana não hesitou na resposta. Aceitou a proposta aliviada, pois sabia que estaria muito bem acompanhada por qualquer pessoa da família de Catarina.


O tempo passava devagar para eles. Richard era um bom homem, muito inteligente e de aparência encantadora. Expirava confiança nos olhos e na fala, isso agradava Alana. Agradava tanto que em poucos dias os dois tornaram-se confidentes. Como o marido estava sempre muito ocupado com seus afazeres no reino, ela passava a maior parte do dia ao lado do empregado.


Uma certa tarde ensolarada de primavera, saíram os dois para caminhar no vasto jardim do castelo. Encontraram um cavalo solto, perto do chafariz, e no calor da conversa, ela confessara a ele que seu maior desejo era subir ao lombo de um alazão. Achava que isso lhe traria paz e bem estar.


De prontidão Richard oferecera-se para ensiná-la a cavalgar. Animaram-se tanto com a idéia que perderam a hora de voltar. Quando deram-se conta, já havia anoitecido, e os trabalhadores voltavam para suas singelas casas.


As coisas aconteciam rápido entre eles. Não demorou muito para que Alana aprendesse andar a cavalo. Em pouco tempo já estavam os dois cavalgando pelo vasto jardim que cercava o castelo. Divertiam-se tanto que desejavam que o dia tomasse o lugar da noite.


Quando o coração do homem controla seu corpo, muitas coisas podem acontecer, contrariando aquilo que é correto para a razão humana.


O sol estava se pondo, mas nenhum dos dois prontificou-se para abandonar a diversão. Sentaram-se na grama, para um breve descanso. Os ruivos cabelos de Alana dançavam com o vento e o sorriso de satisfação que mantinha no rosto, a fazia parecer ainda mais bela do que já era. Foi somente naquele dia que Richard percebera o quão interessante era sua patroa.


Olhara-a com outros olhos. Estava vendo-a como mulher, e não mais como rainha. Seu sorriso, seus cabelos, tudo aquilo o deixava enlouquecido. Não continha-se dentro de si. Foi naquele pôr-do-sol que o primeiro beijo aconteceu, e eles perceberam que já era tarde demais para desistir. Haviam construídos laços de amor, sobre os de amizade. Conheciam-se tão bem quanto eles mesmos podiam conhecer-se.


Com esses pensamentos claros, Richard pediu a Alana que fugissem juntos, para construírem uma vida, uma família. Sabia que correriam riscos, e que se fossem encontrados seriam mortos na forca, mas sabia além de tudo que viver sem a companhia de Alana seria como não viver.


O amor cegara qualquer insegurança que poderiam ter dentro de si mesmo. Fugiram para longe. Muito longe.


O filho que Marjed sempre desejara estava agora no ventre de sua amada esposa, mas ela já não o pertencia mais, muito menos o herdeiro que estava para nascer. O rei sabia para onde a mulher havia fugido, sabia da gravidez e da felicidade do casal, mas ao contrário do que muitos esperavam, não mandou buscá-los, nem os levou à forca. Acima de qualquer mágoa que pudesse ter de Alana, estava seu generoso amor pela esposa, que um dia completara sua vida e fora sua alegria.


Ele sabia que não teria coragem de machucá-la, mas o desgosto de saber que a mulher engravidara de outro o deixava cada vez mais cego. Um dos conselheiros do reino, certo dia lhe contou sobre uma feiticeira, que consertava e estragava vidas e almas com seus feitiços e poções. Descrente da realidade dos feitiços mandou que ela amaldiçoasse a criança que estava no ventre de sua mulher.


O que era um sonho transformara-se em preocupação. Quando a menina finalmente nascera, Marjed já havia esquecido-se do fato da feiticeira. Porém, Alana e Richard estavam prestes a conviver com a maldição para o resto de suas vidas.


Rebeca era uma criança linda, puxara o melhor da aparência dos pais. O lamentável foi que nascera cega, portanto nunca poderia observar a beleza do campo que a cercava. Para não prender-lhe sempre às suas vistas, Alana distribuía todos os dias diferentes objetos com fortes fragrâncias diferentes pelo campo. Ensinara muito bem à filha cada lugar correspondente ao cheiro, assim a menina poderia passear pelo campo sem se perder.


Esse método sempre funcionara muito bem, mas todos os seres humanos um dia erram, e o maior erro de Alana aconteceu em uma tarde de outono. O marido lhe propora uma cavalgada até a cidade, para que comprassem comida e revessem alguns lugares que deixavam saudade. Rebeca não gostava da cidade, por isso decidiu ficar em casa até que eles voltassem. A mãe animara-se tanto com o passeio que se esquecera de trocar os sinalizadores com fragrâncias para a filha.


Assim que partiram, Rebeca decidiu caminhar um pouco pelo campo para relaxar. Como os objetos passaram o dia no sol e no vento, perderam as fortes fragrâncias, ocasionando um desastre para a menina. Estava perdida, longe de casa e sem saber para onde ir. Deu alguns passos para a frente, até sentir algumas rochas.


A noite já havia chegado com sua grandiosidade e o tempo que fechara-se durante o dia, abriu espaço para a chuva. Rebeca percebeu que estava em frente à uma pequena caverna e para proteger-se da chuva, acabou indo abrigar-se embaixo das rochas.


No fundo da caverna havia uma fenda, onde o sol tocava durante toda a manhã. Ali o solo era úmido, e concentrava uma quantidade grande de água constantemente. Com o tempo, nascera um pé de junco que crescera rente às pedras.


O vento fazia com que o junco balançasse, tocando as rochas e troncos que haviam no local. Faziam um som diferente, e no desequilíbrio emocional que Rebeca encontrava-se, acreditou que aquilo tratava-se de algum animal.


Desde pequena sempre fora acostumada a conviver com os animais, por isso aprendera a conversar e entendê-los muito bem. Ficara alguns dias ali, presa naquela caverna, com uma única companhia, que apelidara de James.


Nos dias em que havia pouco vento, James ficava calado por muito tempo. Rebeca sempre aconselhava-o a respirar fundo para amenizar seus problemas emocionais e voltar a conversar com ela. Na verdade, ela sentia que no fundo quem deveria fazê-lo era ela mesma. Sentia-se muito sozinha e temia continuar ali por muito tempo.


Nas setenta e duas horas que estava ali, havia apenas tomado água da chuva. Por esse motivo sentia-se tão fraca fisicamente quanto espiritualmente. Desejava que alguém viesse buscá-la logo. James não abria a boca há algumas horas e isso estava preocupando-a.


Sentada no chão, com as mãos apoiadas na parede de pedra as suas costas, foi arrastando-se até a direção do amigo, a fim de tocar-lhe carinhosamente até que estabelecessem uma boa conversa.


Levou alguns minutos para chegar até o fim da caverna, e quando completara o caminho, esticando a mão até o amigo, descobriu que James não era um animal, nem um humano, mas sim alguns juncos que batiam contra as rochas provocando sons.


Ficara tão chocada com a descoberta que acreditara fielmente que estava louca. Passava todo o tempo sentada no fundo da caverna, sem mexer-se e quase nem piscava. Comportava-se como um cadáver.


Quatro dias antes de todos aqueles acontecimentos, os pais de Rebeca ao voltarem para casa encontraram um pedaço do vestido da filha no chão. Alguns lobos rondavam a casa e o casal acreditara que a menina havia sido o almoço da matilha. Na realidade, quando a menina perdera-se, apenas enganchou o vestido em alguns espinhos de uma roseira. Richard estava tão arrasado com a perda da filha que resolveu levar Alana embora daquela casa, a fim de esquecerem as tristezas.


Um casal de camponeses mudara-se para a cabana da família. Não demorou muito para encontrarem a jovenzinha na caverna, mas hesitaram em tocá-la. Olharam-na calmamente, chamaram-na e nada acontecia. Por fim, depois de algumas horas de observação, alegaram que a menina não estava viva e simplesmente fecharam a entrada da caverna com algumas rochas.


Rebeca ainda respirava, ao perceber o engano dos camponeses, largou-se para as trevas, sem lutar para sobreviver. Dois dias depois, não respirava mais. O tempo passa depressa quando não estamos mais aqui para olhar para os ponteiros do relógio correndo em direção à morte.


O local ficara desabitado por um longo tempo, até que alguns arqueólogos foram até o bosque atrás de vestígios indígenas que faziam-se presentes naquela região. Lionel, um homem sábio de aproximadamente quarenta anos, encontrara uma caverna coberta de limo e algumas plantas ao redor. Sua curiosidade era grande, decidira abri-la para averiguar por dentro. Chamou alguns colegas e empurraram a rocha que tampava a entrada da caverna. Lá dentro encontraram um cadáver com longos cabelos ruivos sobre o vestido branco já encardido e apodrecido. Em sua volta haviam muitos pés de junco, com quase um metro de altura. Apesar do local manter-se bem seco, as plantas eram muito vivas, com ar de saúde. Tiraram o cadáver da caverna, levando-a para o carro, onde examinariam cuidadosamente, a fim de levá-lo para o museu. Lionel foi o último a abandonar a caverna. Quando a menina já havia sido colocada na cabine, virou para a escuridão embaixo das rochas e percebeu que o junco estava deitado ao chão, morto.


Anos passaram-se e nada mais cresceu naquela caverna. O junco ia degradando-se aos poucos, na triste solidão da caverna.

Espiral


Apontara-lhe o dedo indicador no rosto, a um centímetro do nariz, causando-lhe ódio e desconforto. Gritava para todo aquele que quisesse ouvir todas as façanhas que a mulher fizera debaixo de seu nariz, e que agora servia-lhe de explicação para o belo par de chifres sobre a cabeça.

Talvez não fosse tão engenhosa como pensara. Havia sido pega no ato da traição, enrolada sobre os lençóis com o vizinho da casa laranja. O marido não entendia o que poderia a ter levado a isso. Um homem tão bem estruturado como ele não conseguiria jamais entender o que fizera Jack para atrair a ingênua esposa do vizinho ocupado.

A discussão entre o casal acontecia calorosamente no quarto, onde Silvana encontrava-se enrolada nos lençóis florais que comprara com o dinheiro da aposentadoria do marido, quatro dias antes de ser descoberta. Estava de pé ao lado da cama ouvindo os gritos misturados com lágrimas e soluços do marido. Jack estava deitado sobre a cama, coberto apenas pela escuridão da noite, que não permitia maior visão do que alguns palmos da luz do luar. Coçava o bigode calmamente enquanto tentava assistir ao filme que passava naquela madrugada em uma emissora de televisão. Quando Murilo exaltava a voz no calor da discussão, apenas apertava fortemente o botão de volume do controle remoto que acomodara sobre a barriga.

O comportamento indiferente do amante fazia Silvana indagar-se sobre a verdadeira importância que tinha na vida de Jack. Talvez devesse esquecê-lo e ajeitar-se no casamento antes que trágicos acontecimentos viessem a se fazer naquela mansão da rua Lisenberg, onde fora palco para inúmeras lendas de assassinato que antecederam a vinda da família de seu excelentíssimo marido Murilo Belato. Mas agora todos os pensamentos iam por água abaixo. O marido sabia de tudo.

Naquele mesmo dia, como em todas as tardes de outono Silvana ficara sozinha em casa, enquanto o marido jogava pôquer com seus antigos colegas de faculdade, em um barzinho perto do aeroporto. Seu fascínio por aviões o fizera seguir uma longa carreira como piloto da aeronáutica na juventude. Agora no auge de sua vida mansa, aproveitava as tardes para divertir-se e observar os aviões chegando e partindo a todo momento. Entretia-se pelas ruas o dia inteiro, despreocupado com os afazeres da mulher em casa.

Foi assim durante quinze anos consecutivos, até aquela tarde de 18 de abril quando a mudança dos Canova chegara à casa ao lado. Murilo já estava nas ruas quando o caminhão com os móveis do casal chegara. Como era costume naquele bairro, Silvana foi até a rua cumprimentar os novos vizinhos. Um homem muito bem apresentado sorria-lhe com o canto da boca enquanto aproximava-se. Tinha um belo par de olhos verdes que encantavam qualquer mulher, e sapatos muito bem engraxados que na certa haviam lhe custado uma grana alta. Empurrava calmamente uma senhorita moribunda sobre uma cadeira de rodas velha. Trazia consigo um ar de cadáver, tanto no tom amarelado da pele quanto na voz trêmula e baixa que ecoava pela garagem vazia da nova casa. Conversaram um pouco com Silvana, em frente ao portão da residência, depois foram para dentro da casa organizar o que faltava e despediram-se educadamente da boa anfitriã.

Todas as manhãs o novo vizinho saía até o jardim para regar as flores, e quase sempre acenava rapidamente para a jovem moça de longos cabelos dourados e vestido curto, que esperava ansiosamente a volta de seu marido.

Dos acenos sucederam-se conversas e destas criavam-se laços constituídos pela carência de ambos. Ele havia perdido a mulher há poucos dias, ela perdia o marido há quinze anos para o pôquer. De carências surgiu o desejo, maldito sentimento que tomava-lhe a alma a cada sussurro de pecado que cometiam.

Passaram quinze anos em encontros secretos. Todos os dias depois do café, quando Murilo seguia até o aeroporto, Silvana fugia até a casa vizinha ao encontro de seu fogoso amante Jack. Durante todos os anos de traição, ela jamais atrevera-se a levá-lo a sua casa e mais precisamente a sua cama.

A cada dia que passava sentiam-se milagrosamente satisfeitos com a vida que levavam. E já não mais consideravam-se amantes do pecado, mas sim marido e mulher. Murilo nem podia imaginar os feitos da mulher durante suas saídas. Nunca sentira durante aqueles cento e oitenta meses seus laços afetivos serem corroídos com o desgaste do amor e paciência, e com a constante presença da mesmice.

Silvana sempre culpava-se pelas traições, chegara até a largar da vida sacana, o que não durou por muito tempo depois que o marido esquecera-se de seu aniversário de quarenta e nove anos. Sempre fora muito vingativa, e naquele dia após a saída do marido, ligara para que o amante fosse até sua casa.

Aqueles quarenta e nove anos foram manchados pela lembrança de sua maior sacanagem. Estava em atos sobre os lençóis de seda que comprara naquela semana, e entre risadas e suspiros não ouvira os passos do marido que chegava em casa mais cedo, trazendo-lhe um bolo com a seguinte frase: PARA MINHA SILVANA.

O maior erro da vida de Murilo fora aquela surpresa de aniversário para a mulher. Talvez se tivesse dado-lhe logo o presente e não tivesse fingido o esquecimento do aniversário não encontraria a mulher sobre a cama com o vizinho da mansão ao lado, que o vencera em diversos jogos de pôquer no barzinho.

Parecia-lhe que a rivalidade entre os dois fazia-se também em respeito à Silvana. Já não bastava a Jack tomar-lhe dinheiro no jogo, tinha também de levar sua ingênua esposa para a cama, a sua cama!

Estavam lá os três, naquele quarto escuro, em uma noite de outono. Murilo exaltou-se por alguns minutos com a mulher. Jack esquecia de toda aquela situação, enquanto voltava toda sua atenção para o filme na televisão.

Faziam 30º naquela madrugada. Murilo percebera que tudo aquilo não o levaria a nada. Calou-se por alguns minutos, depois com voz baixa convidou os dois a vestirem-se e irem até a cozinha. Assim o fizeram. Dois minutos depois, encontravam-se os três degustando o bolo de aniversário de Silvana.





Imorredouro






O sol não estava lá. Não havia resquícios dele . Nuvens espessas e grossamente escuras tomavam conta da paisagem paradisíaca do lugar naquele dia. Uma brisa quente fazia com que a grama ainda não aparada roçasse em minhas pernas estendidas ao longo do gramado. Era apenas eu e o mundo. Mais ninguém.

Poemas de amor dançavam em minha imaginação, e pouco a pouco desciam por entre meus dedos, parando no papel. O dia ia se transformando em noite enquanto eu me transformava em nada.

Estava envolvida em pensamentos quando vi pousar ao meu lado uma pequena pipa colorida. Na outra ponta do cordão encontrava-se um garoto extremamente tímido devido à situação.

Percebi que poderia fazer um bem para minha consciência confortando-lhe com um carismático sorriso. Mas porque faria isso? Ele me devia desculpas pelo susto. Afinal, se eu tivesse problemas cardíacos teria morrido ali mesmo.

Mas por outro lado, exaltou-se a parte angelical de minha alma, tomando conta de mim, só percebi segundos depois que sorria. Ele aproximava-se calmamente enquanto as batidas do meu coração saltavam com tanta força que acreditei que fosse perdê-lo ali mesmo.

Eu o conhecia! Mas de onde? Não sabia ao certo. Talvez fosse parecido com alguém. Mas não, não era isso. Eu o conhecia muito bem. Bem demais para ser apenas um engano.

Alguns segundos depois ele já estava sentando ao meu lado, pedindo desculpas pelo incidente. Para a nossa surpresa, eu sorri e disse:

- Ta tudo bem Otto.

Ele me fitou por alguns instantes, inseguro. Depois resolveu acrescentar:

- Meu nome não é Otto.

- Eu sei que não. Esperava que me corrigisse, então não precisaria perguntar seu nome.

- Podemos começar de novo então.

- É mais fácil você dizer logo seu nome, não acha?

- Oliver.

- Cheguei perto.

- Nem tanto.

- Otto é o nome do meu cachorro.

- Por que me chamou assim então?

- Você é parecido com ele. Ainda mais quando faz essa cara de desentendido.

- Espero que ele não tenha pulgas!

O silêncio paira no ar por alguns instantes. Nós dois estamos pensando em coisas bem distantes dali.

- De que?

- De que o que?

- Oliver de que?

- Ramalho.

- Hum.

- Sem graça, eu sei.

- Se eu ficar contigo o sobrenome do meu cachorro vai ser Ramalho. Otto Ramalho... combina bastante.

- E o teu, combina?

- Não. Fica brega.

- Como faz então?

- Tu pode casar com o Otto, assim meu nome continua o mesmo.

- Ele não faz meu tipo.

- Como sabe? Nem viu ele!

- Digamos que não sou chegado em focinhos molhados e rabos peludos.

- Acostuma com o tempo.

- Onde tu mora?

- Numa casa.

- Legal. Eu moro em uma também. Temos algo em comum.

- Engraçadinho.

- Obrigado.

- De nada.

- É sempre assim?

- Sempre assim o que?

- Você...é sempre assim sincera?

- Herança de família. Quando a gente casar vai ficar um pouco pra ti também.

- A gente? Eu não ia casar com o Otto?

- Ia, mas eu gostei de ti.

- Gostou?

- É surdo?

- Desculpe.

Mais um momento de silêncio acontece. O vento começa a soprar trazendo sorrisos. Não queria ir embora, estava extremamente à vontade.

- Qual teu nome?

- Alice.

- De que?

- De carne e osso.

- Sei. Outra coisa que temos em comum!

- Vai ser bom.

- O que?

- Casar contigo. Vai ser bom.

- Por quê?

- Não sei. Só sei que vou gostar.

- Fede?

- Não e tu?

- Me referia ao teu cachorro.

- Ah...

- E então, fede?

- Mais do que a morte.

- Isso é muito?

- Depende.

- De que?

- Do dia. Ás vezes a morte fede mais, às vezes menos. Entende?

- Sim... Quer bala?

- Obrigado.

- Ta acabando.

- Compra mais...

- Não, o dia.

- Amanhã tem mais vinte e quatro horas a seu dispor.

- Ou não.

- Por quê?

- Talvez eu não esteja mais aqui amanhã. Talvez eu não esteja mais aqui hoje.

- Sei... Vida violenta.

- Não... Talvez eu mude de cidade.

- Por quê?

- Meus pais querem.

- Sei... Mas tu volta?

- Acho que não.

- Que pena.

- É.

- O Otto vai sentir muito.

- Eu mando um cartão no dia dos namorados.

- Pro Otto?

- Não, pra ti.

- Pra mim por quê?

- Quero te dar o Ramalho um dia.

- Só se tu aceitar o Romanatto.

- Eu volto.

- Quando?

- Não sei, mas volto.

- Eu vou estar aqui.

- Eu sei que vai.

- Tchau.

- Tchau.

Oliver fechou os olhos e seu último dia na Terra foi selado com um beijo de amor eterno. Alice vai esperar por Oliver amanhã, mas ele não virá. Nem na manhã seguinte. Nem durante vinte cinco anos, até que Alice sofra um acidente no trânsito e encontre-se com Oliver, para sempre.


Teologal


 Todos os sonhos são feitos de imaginação. Simplesmente e basicamente impossíveis de serem reconhecidos por qualquer outra pessoa além daquele que os porta. Somos seres indecifráveis aos olhos curiosos que se mantêm à espreita. Extremamente complicados até para nós mesmos. Feitos de emoções altamente explosivas, somos o combustível da vida.
No primeiro piscar de olhos perdemos milhares de acontecimentos. Registramos certas coisas em nossa mente. Coisas que ficam lá para o resto da vida.


Na minha juventude, registrei diversos fatos e pessoas que foram perdendo-se no esquecimento com o tempo. Mas um em específico nunca se foi. O único que durante sessenta anos eu desejei que fugisse de minhas lembranças. Todas as noites, em meu travesseiro eu pedia à uma força maior que me ajudasse. Pedia a velhice e as caduquices constantes. De fato, alguém ouvia minhas preces todas as noites.


O tempo passa e não perdoa nenhum homem vivo. O que para alguns seria uma benção, para mim tornou-se um martírio. Não sabia nem ao menos o meu próprio nome alguns dias. Certas manhãs quando levantava cedo, ficava em frente ao espelho perguntando a mim mesma quem seria aquela pessoa refletida. Minhas certezas iam dissipando-se aos poucos, como um relógio de pilhas fracas.


Apesar de todos esses acontecimentos, havia uma imagem que nunca se perdera. Era um homem. Alto, magro, sorridente e tímido. Tinha olhos da cor do mar. O nome era desconhecido. Havia muitas fotos dele em minha casa. Estavam espalhadas por todos os cantos.


Nunca me esqueceria daquele homem de presença forte. Fora o amor platônico de minha vida. Eu o via todos os dias, mas ele nunca me notara. Durante sessenta anos esse homem marcara minha vida sem ao menos saber disso.


Lembro-me claramente do dia em que o vi pela primeira vez. Acidentalmente me vi em seus braços. Num momento de distração de ambos, encontramo-nos no mesmo espaço durante uma fração de segundo.


Para as pessoas que esperam uma vida inteira por um grande acontecimento, aqui estou eu para provar-lhes que às vezes pequenos gestos transformam toda uma vida. Basicamente, se naquela fração de tempo eu não houvesse esbarrado nele, talvez hoje fosse casada com o homem mais rico da cidade ou morasse com um cachorro e um periquito. Mas nós não possuímos o controle da vida. Somos apenas as marionetes do destino. E quis este me proporcionar um amor impossível.


Todos os dias meus olhos encontravam-se perdidos à procura daquele homem. Simplesmente sem nenhuma razão qualquer, fui perdendo o interesse em todas as outras situações e oportunidades que apareciam em minha vida.


O colegial acabou, e então eu realmente acreditei por alguns instantes que tudo acabaria ali. Mas mais uma vez o destino me jogou no caminho errado. Passamos a trabalhar no mesmo local. Nunca estabelecemos nenhum tipo de relação.


Agora recordo-me seu nome. Estava escrito no seu crachá dourado com letras de forma pretas: Germano Trindade. Era um dos empregados mais disputados da empresa. Nunca sequer me olhou, nem por um milésimo de segundo.


Nós dois envelhecemos demoradamente. Como se já não bastasse ter de vê-lo no trabalho e em meus sonhos, Germano mudou-se para a casa do outro lado da rua. Eu o via todos os dias da janela do meu quarto. Às vezes mantinha-me ali intacta durante horas, observando-o de longe. Ele tocava sua vida sem saber de minha existência. Casou-se com uma jovem muito bonita da empresa. Nunca tiveram filhos.


Infelizmente Germano não obteve sorte no quesito amor. A mulher que escolhera para casar-se sofria de câncer de mama. Em pouco tempo, a doença havia espalhado-se por todo o corpo, que não resistiu. No aniversário de seis anos de casamento, ela falecera.


O velório seguido do enterro fora o dia mais triste de toda a vida de Germano. Ele passou todos os momentos ao lado do caixão, ajeitando cuidadosamente o terno vinho da mulher.


Eu estava lá. Durante todos os minutos possíveis. Em todas as lágrimas que escorreram em seu rosto. Em todos os momentos de solidão, nos quais ele ia até a janela da sala e mantinha-se lá durante o dia todo, buscando respostas para as perguntas mais profundas que um homem pode buscar à beira dos cinqüenta anos. Eu estive lá todo esse tempo, mas ele jamais erguera os olhos em minha direção.


Eu o amei de longe durante sessenta anos. Eu o procurei em todos os minutos de minha vida. Todas as noites pedi sua presença, mas ele jamais levantou os olhos em minha direção. Sua doce voz jamais dirigira-se a mim.


Conhecia-o mais do que qualquer outra pessoa. Sentia sua tristeza e solidão. Sentia seu medo de seguir sozinho e sua preocupação com a saúde. Enquanto todos seguiam suas próprias vidas, eu segui o caminho de Germano. Como uma triste sombra esquecida ao longo dos muros e calçadas.


Mas sempre soube que aquele era meu destino. E jamais seria feliz sem aquele doce sorriso espontâneo todas as manhãs. Mesmo que nunca fosse direcionado a mim, sentia-me privilegiada. Eu fui a mulher mais feliz do mundo, porque amei profundamente sem nunca precisar de palavras para isso. Enquanto milhares de casais amavam-se através de falsas declarações, eu amei por gestos. Amei durante sessenta anos, sem passar por uma única discussão.


A vida acelerou-se de repente. As pilhas enfraqueciam pouco a pouco. O relógio pregado na parede da cozinha denunciava meus últimos suspiros. Adoeci. Adoeci e não pude manter-me de pé em frente à janela por um longo tempo. Foram os dias mais longos da minha vida. Só conseguia pensar em Germano do outro lado da rua. Sua presença era essencial para minha saúde. Durei uma semana. Nada mais que isso. Sete intermináveis dias sem a presença iluminada do homem por quem eu me apaixonara.


No dia dezoito de outubro, quando o relógio marcava três horas da manhã, o destino decidiu que meu tempo havia se esgotado. Tudo estava acabado. Não haviam mais chances de conquistá-lo, nem esperanças de que um dia ele erguesse seus olhos em minha direção.


Senti uma brisa tocando-me de leve. Ao fundo haviam gritos e choros de alguns conhecidos. Abri meus olhos e lá estava eu. Deitada sobre a cama. Vizinhos corriam pedindo ajuda, mas era tarde demais.


Germano estava acomodado em sua janela durante o acontecido. Não moveu-se um centímetro para prestar socorro. Ele sabia. Sabia que não havia mais nada a fazer. Quando o movimento em minha casa diminuiu, ele preparou-se para ir para a cama. Em um reflexo de uma fração de segundo, percebi que uma lágrima corria em seu rosto. Pela primeira vez senti que ele olhava para mim. Os olhos estavam parados em minha direção. Pela primeira vez em sessenta anos, eu me senti amada.


Acompanhei todos os movimentos feitos com meu corpo de perto. No velório, poucos mostraram-se presente. Apenas alguns vizinhos e conhecidos passaram para ver-me pela última vez. Ninguém manteve-se ali. Ninguém além de um velho homem alto e magro, que vestia um lindo terno preto, o mesmo que usara no enterro da mulher.


Germano esteve ali comigo, segurando minha mão o tempo todo. E eu me senti a mulher mais amada do mundo. Porque sempre amei com gestos, exatamente como aquele velho homem. Exatamente assim, durante sessenta anos, eu o amei profundamente esperando alguma reação. Nunca percebi que durante sessenta anos o mesmo homem amara-me profundamente com a alma.


Uma rosa branca foi jogada em meu sepulcro. Lágrimas de adeus correram por seu rosto. Nenhuma palavra foi pronunciada. Seus olhos contavam-me segredos de um amor eterno.




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