15 de out. de 2009

Teologal


 Todos os sonhos são feitos de imaginação. Simplesmente e basicamente impossíveis de serem reconhecidos por qualquer outra pessoa além daquele que os porta. Somos seres indecifráveis aos olhos curiosos que se mantêm à espreita. Extremamente complicados até para nós mesmos. Feitos de emoções altamente explosivas, somos o combustível da vida.
No primeiro piscar de olhos perdemos milhares de acontecimentos. Registramos certas coisas em nossa mente. Coisas que ficam lá para o resto da vida.


Na minha juventude, registrei diversos fatos e pessoas que foram perdendo-se no esquecimento com o tempo. Mas um em específico nunca se foi. O único que durante sessenta anos eu desejei que fugisse de minhas lembranças. Todas as noites, em meu travesseiro eu pedia à uma força maior que me ajudasse. Pedia a velhice e as caduquices constantes. De fato, alguém ouvia minhas preces todas as noites.


O tempo passa e não perdoa nenhum homem vivo. O que para alguns seria uma benção, para mim tornou-se um martírio. Não sabia nem ao menos o meu próprio nome alguns dias. Certas manhãs quando levantava cedo, ficava em frente ao espelho perguntando a mim mesma quem seria aquela pessoa refletida. Minhas certezas iam dissipando-se aos poucos, como um relógio de pilhas fracas.


Apesar de todos esses acontecimentos, havia uma imagem que nunca se perdera. Era um homem. Alto, magro, sorridente e tímido. Tinha olhos da cor do mar. O nome era desconhecido. Havia muitas fotos dele em minha casa. Estavam espalhadas por todos os cantos.


Nunca me esqueceria daquele homem de presença forte. Fora o amor platônico de minha vida. Eu o via todos os dias, mas ele nunca me notara. Durante sessenta anos esse homem marcara minha vida sem ao menos saber disso.


Lembro-me claramente do dia em que o vi pela primeira vez. Acidentalmente me vi em seus braços. Num momento de distração de ambos, encontramo-nos no mesmo espaço durante uma fração de segundo.


Para as pessoas que esperam uma vida inteira por um grande acontecimento, aqui estou eu para provar-lhes que às vezes pequenos gestos transformam toda uma vida. Basicamente, se naquela fração de tempo eu não houvesse esbarrado nele, talvez hoje fosse casada com o homem mais rico da cidade ou morasse com um cachorro e um periquito. Mas nós não possuímos o controle da vida. Somos apenas as marionetes do destino. E quis este me proporcionar um amor impossível.


Todos os dias meus olhos encontravam-se perdidos à procura daquele homem. Simplesmente sem nenhuma razão qualquer, fui perdendo o interesse em todas as outras situações e oportunidades que apareciam em minha vida.


O colegial acabou, e então eu realmente acreditei por alguns instantes que tudo acabaria ali. Mas mais uma vez o destino me jogou no caminho errado. Passamos a trabalhar no mesmo local. Nunca estabelecemos nenhum tipo de relação.


Agora recordo-me seu nome. Estava escrito no seu crachá dourado com letras de forma pretas: Germano Trindade. Era um dos empregados mais disputados da empresa. Nunca sequer me olhou, nem por um milésimo de segundo.


Nós dois envelhecemos demoradamente. Como se já não bastasse ter de vê-lo no trabalho e em meus sonhos, Germano mudou-se para a casa do outro lado da rua. Eu o via todos os dias da janela do meu quarto. Às vezes mantinha-me ali intacta durante horas, observando-o de longe. Ele tocava sua vida sem saber de minha existência. Casou-se com uma jovem muito bonita da empresa. Nunca tiveram filhos.


Infelizmente Germano não obteve sorte no quesito amor. A mulher que escolhera para casar-se sofria de câncer de mama. Em pouco tempo, a doença havia espalhado-se por todo o corpo, que não resistiu. No aniversário de seis anos de casamento, ela falecera.


O velório seguido do enterro fora o dia mais triste de toda a vida de Germano. Ele passou todos os momentos ao lado do caixão, ajeitando cuidadosamente o terno vinho da mulher.


Eu estava lá. Durante todos os minutos possíveis. Em todas as lágrimas que escorreram em seu rosto. Em todos os momentos de solidão, nos quais ele ia até a janela da sala e mantinha-se lá durante o dia todo, buscando respostas para as perguntas mais profundas que um homem pode buscar à beira dos cinqüenta anos. Eu estive lá todo esse tempo, mas ele jamais erguera os olhos em minha direção.


Eu o amei de longe durante sessenta anos. Eu o procurei em todos os minutos de minha vida. Todas as noites pedi sua presença, mas ele jamais levantou os olhos em minha direção. Sua doce voz jamais dirigira-se a mim.


Conhecia-o mais do que qualquer outra pessoa. Sentia sua tristeza e solidão. Sentia seu medo de seguir sozinho e sua preocupação com a saúde. Enquanto todos seguiam suas próprias vidas, eu segui o caminho de Germano. Como uma triste sombra esquecida ao longo dos muros e calçadas.


Mas sempre soube que aquele era meu destino. E jamais seria feliz sem aquele doce sorriso espontâneo todas as manhãs. Mesmo que nunca fosse direcionado a mim, sentia-me privilegiada. Eu fui a mulher mais feliz do mundo, porque amei profundamente sem nunca precisar de palavras para isso. Enquanto milhares de casais amavam-se através de falsas declarações, eu amei por gestos. Amei durante sessenta anos, sem passar por uma única discussão.


A vida acelerou-se de repente. As pilhas enfraqueciam pouco a pouco. O relógio pregado na parede da cozinha denunciava meus últimos suspiros. Adoeci. Adoeci e não pude manter-me de pé em frente à janela por um longo tempo. Foram os dias mais longos da minha vida. Só conseguia pensar em Germano do outro lado da rua. Sua presença era essencial para minha saúde. Durei uma semana. Nada mais que isso. Sete intermináveis dias sem a presença iluminada do homem por quem eu me apaixonara.


No dia dezoito de outubro, quando o relógio marcava três horas da manhã, o destino decidiu que meu tempo havia se esgotado. Tudo estava acabado. Não haviam mais chances de conquistá-lo, nem esperanças de que um dia ele erguesse seus olhos em minha direção.


Senti uma brisa tocando-me de leve. Ao fundo haviam gritos e choros de alguns conhecidos. Abri meus olhos e lá estava eu. Deitada sobre a cama. Vizinhos corriam pedindo ajuda, mas era tarde demais.


Germano estava acomodado em sua janela durante o acontecido. Não moveu-se um centímetro para prestar socorro. Ele sabia. Sabia que não havia mais nada a fazer. Quando o movimento em minha casa diminuiu, ele preparou-se para ir para a cama. Em um reflexo de uma fração de segundo, percebi que uma lágrima corria em seu rosto. Pela primeira vez senti que ele olhava para mim. Os olhos estavam parados em minha direção. Pela primeira vez em sessenta anos, eu me senti amada.


Acompanhei todos os movimentos feitos com meu corpo de perto. No velório, poucos mostraram-se presente. Apenas alguns vizinhos e conhecidos passaram para ver-me pela última vez. Ninguém manteve-se ali. Ninguém além de um velho homem alto e magro, que vestia um lindo terno preto, o mesmo que usara no enterro da mulher.


Germano esteve ali comigo, segurando minha mão o tempo todo. E eu me senti a mulher mais amada do mundo. Porque sempre amei com gestos, exatamente como aquele velho homem. Exatamente assim, durante sessenta anos, eu o amei profundamente esperando alguma reação. Nunca percebi que durante sessenta anos o mesmo homem amara-me profundamente com a alma.


Uma rosa branca foi jogada em meu sepulcro. Lágrimas de adeus correram por seu rosto. Nenhuma palavra foi pronunciada. Seus olhos contavam-me segredos de um amor eterno.




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